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Terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 10

Sucessão por cansaço
A volta

ACONTECEU NO CAPÍTULO 9:

Comparada com o imenso tesouro de conhecimentos perdido, a porção de civilização recuperada era insignificante, apenas o bastante para minorar as duras condições de vida na ilha. Mas o mais precioso atributo do ser humano, a inteligência, estava presente. Nas escolas, as matérias de geografia e história do Brasil foram suprimidas e em parte incorporadas ao estudo da pré-história. Do mesmo modo, as línguas estrangeiras como inglês, espanhol e francês passaram a ser estudadas na cadeira de “línguas mortas”. Os estudiosos tiveram que se conformar com as enormes lacunas e as insuficiências do acervo de livros da biblioteca pública, a única. Os grandes vultos da literatura universal estavam, por desgraça, ausentes e apenas um punhado de reproduções comerciais ou folhinhas dava uma ideia do que tinham sido as obras primas da pintura. Exemplares de objetos, produtos, vestimentas e aparelhos procedentes do continente sumido foram reunidos numa exposição permanente denominada Memória da Antiguidade. O poder público dedicou atenção prioritária à preservação do meio ambiente, ordem pública e limitação demográfica. Acumulando os papéis de legislador e ministrador da justiça, o governo concebeu um novo código de leis apoiado nos bons costumes, simplificando ritos e aproveitando do código civil brasileiro apenas as partes aplicáveis à exígua dimensão do mundo e o reduzido número de seus habitantes.

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Sucessão por cansaço

Depois de 25 anos, poucos relógios ainda funcionavam no mundo e esses poucos eram todos mecânicos. Os eletrônicos de há muito tinham parado por falta de pilhas. Não faziam muita falta, não havia programas nem compromissos com hora marcada. Não havia trens a tomar nem reuniões com banqueiros ingleses. Fora as aulas na escola, ninguém se sentia obrigado a obedecer a horários certos. A posição do sol e fisiologia de cada um determinavam mais ou menos a hora do almoço e do jantar. Os galos cantavam à hora do chicória da manhã. No mais, marcavam-se os encontros para “de manhã”, “à tarde”, antes ou depois do jantar.

Estava marcada para a tarde daquele dia 8 de dezembro de 25 uma reunião do Conselho de Governo, derivado do antigo Conselho de Sábios. Seus membros começaram a chegar em torno das três. Pedro Iroquês foi um dos últimos, logo abriu a sessão com a leitura da ata da reunião anterior. Em seguida, falou:

— Meus amigos, quando eu subia há pouco a escadaria desta casa, tive de parar por falta de fôlego. O esforço físico vem provocando em mim essa falta de ar preocupante. Isto me leva a expor o desejo que já venho tendo há algum tempo. Quero me aposentar.

Um murmúrio de protesto percorreu a sala. Uma voz se ergueu:

— Você ainda está em plena força da idade!

— É só aparência – respondeu Pedro. — Já sinto o peso dos meus quase 88 anos.

— Mas o seu cargo não exige grande esforço – atalhou Marcos Samikov (69).

— Depois de ter posto o mundo em ordem, não custa nada governá-lo – disse, despertando risos e aplausos, o juiz Marco Aurélio Barbosa (92).

— E se você largar este abacaxi não terá mais nada para fazer e vai se aborrecer – acrescentou Guiomar Novaes da Silva (57), sanitarista que ocupava o lugar do prof. Nicolau Pacheco, falecido em 23.

Pedro Iroquês agradeceu essas e outras amabilidades e continuou:

— Sinto também outras deficiências. A minha memória, por exemplo, tem falhado. Outro dia custei a me lembrar de... do quê foi mesmo? Vejam só, esqueci de novo! Enfim, meus amigos, vocês têm de reconhecer que eu mereço descanso e esta é a hora de marcá-lo.

A assembléia relutou mas acabou concordando com a aposentadoria do “chefe”. Pedro Iroquês sempre repelira os títulos que propunham – “governador”, “presidente”, “xerife”, “rei”, “gerente” – porque eram incompatíveis com a modéstia do ocupante do cargo. Ou melhor, ele admitia que o título de presidente ou governador do mundo era cabível, mas o achava ridiculamente pomposo para chefe de uma pequena comunidade.

Passou-se em seguida a deliberar sobre a sucessão. A primeira proposta, de que o próprio Iroquês designasse seu sucessor, foi rejeitada por ele mesmo, no que foi apoiado pelo historiador Rodrigo Fragoso Telles (71 ) que pronunciou esta pequena preleção:

— A história mostra que democracia é uma ideologia recente. As sociedades primitivas eram governadas por caciques, feiticeiros, reis, generais e sacerdotes – indivíduos que representavam castas e que, para mandar, se impunham pela força e usurpação. A necessidade de conquistar espaço vital para a comunidade, defendê-la dos inimigos e assegurar os meios de subsistência pedia o pulso de uma autoridade e não admitia o luxo de vozes divergentes, de discussão de ideias, de direitos civis, enfim de liberdades consentidas que se tornavam direitos à medida que a sociedade evoluía. No começo desta nossa era de sobreviventes, tivemos uma experiência de democracia frustrada porque não possuíamos ainda noção daquilo que nos seria exigido para sobreviver. Todos os nossos valores eram ainda os do mundo que se extinguiu. Agora somos uma sociedade adaptada a um meio ambiente precário, com a questão de subsistência resolvida. Não precisamos construir muralhas nem disputar caça, comida ou território com ninguém, só existimos nós neste pequeno pedaço de terra. Não nos faz falta a autoridade de um comandante, convivemos em harmonia e podemos, sim, ensaiar a volta à democracia. Devemos dar participação a todos os cidadãos no governo, começando pela eleição dos governantes.

— Fazer uma abertura lenta, gradual e segura... – observou o conselheiro Modesto de Souza Carvalho (90), sem que ninguém entendesse a alusão.

— Nada disso! – interveio Iroquês. — Vamos convocar o povo para uma nova experiência de democracia direta. Desta vez vai dar certo.

Aquele 8 de dezembro também era o dia do aniversário de Iroquês. Ele nunca quis se mudar, morava na mesma casinha da Ponta Azeda, ampliada com puxadinhos. Suas filhas Marciana (47) e Netúnia (45) estavam muito bem casadas e, com os maridos, continuavam a morar na casa paterna. Obedientes à lei da limitação da natalidade, tinham um filho cada uma, dois adolescentes. Também moravam com a família Selene (44), casada com Gesualdo (46), e estes foram menos obedientes à legislação, tinham duas meninas de 16 e 14 anos.

À noite, muitos amigos foram chegando para celebrar a data junto com a família. O assunto das conversas, inevitavelmente, foi a renúncia de Pedro e a sua sucessão. Que Pedro merecia descansar era uma unanimidade, reforçada por sua mulher Venúsia (69) que, enquanto repartia fatias de um enorme bolo de fubá, dizia:

— Ninguém conseguiria fazer o que o meu marido fez. Se ainda existisse Brasil, ele poderia seria o presidente da República. Mas agora, chega, queremos o Pedro aqui em casa, cercado do nosso carinho.

Já a sucessão provocou sérias discussões. A própria Venúsia reprovava a atitude de Pedro.

— Não entendo porque você não põe o Gesualdo no seu lugar. Afinal ele é o seu genro! Você ainda está com a faca e o queijo na mão!

— Isso seria continuar a minha ditadura – defendeu-se Iroquês.

— E daí? – perguntou mestre Custódio (67). — Não devemos satisfação a ninguém. Nós trabalhamos para o bem de todos, nós sabemos do que o povo precisa. Nós fazemos e nós julgamos.

— Nós quem? Somos melhores, valemos mais do que os outros, o resto da gente? Era assim que pensavam os príncipes da Idade Média – disse Fragoso Telles. — Eles faziam o que lhes dava na telha e os súditos tinham de obedecer.

— Tenho é medo que aquela cambada de crentes volte, vocês se lembram? – disse o pescador Oraídes (70).

— Não acredito que possam voltar – disse Iroquês. — Eles estão dispersos, acabou aquele fervor e já não enganam ninguém. Mas esse é um risco que, na democracia, precisamos correr.

— Quase todo o mundo virou espírita — observou Gesual­do. — Crentes mesmo, agora, são uns poucos.

A discussão era boa, entrou pela noite e aqueles amigos custaram a se dispersar. Tiveram dificuldade de enxergar o caminho de casa por causa de uma forte cerração, coisa que havia muitos anos não acontecia.

A volta

— Deus seja louvado!

— Deus ouviu as nossas preces!

— Deus é fiel!

— Aleluia!

Emocionadas exclamações de júbilo ecoaram nas igrejas de São Sebastião quando circulou entre os fiéis a boa notícia de que Ilhabela tinha reaparecido. Era a primeira hora da manhã do dia 9 de dezembro de 2007 e nesses templos, assim como nos lugares de culto de outras crenças, ainda se celebravam ofícios e vigílias diárias em intenção dos que haviam desaparecido quando a ilha sumira em agosto.

De fato, depois de uma noite sem lua e de calmaria absoluta (os insones estranharam a falta do ruído ritmado da arrebentação), o dia clareara mostrando a Ilhabela em sua dimensão original, recolocada na sua posição exata. A diferença em relação à imagem conhecida da ilha, tão exuberantemente verde, é que ela já não era tão verde, verde profundo. Era verde clarinho, queimado, e boa parte dos montes se apresentava pelada, cor de terra nua. A mata atlântica, que sempre cobrira seus morros e montanhas, parecia ter sido substituída por uma vegetação rasteira, pelo menos ali na parte fronteira a São Sebastião. Na multidão que logo acorreu ao Aterro desativado, algumas pessoas, portadoras de binóculos, informavam que podiam ver, nas encostas da ilha, plantações de milho, feijão, cana e mandioca. No mais, os binóculos não captavam qualquer trânsito de veículos e nem eram capazes de distinguir a presença de gente. Aquela visão tinha algo de estranho, alguns a achavam fantasmagórica, e havia pessoas que se benziam ao contemplá-la.

A volta da Ilhabela foi sensação instantânea na mídia nacional e internacional, ocupando tempo e espaço equivalentes aos que os jornais, revistas, televisões e rádio haviam dedicado à desaparição da ilha. As primeiras informações especulavam com a possibilidade de se conhecer, agora, por fim, a verdadeira natureza do fenômeno. Haveria sobreviventes? O que eles contariam? Notícias sobre os primeiros contatos eram ansiosamente aguardadas. Contudo, dias depois, uma pesquisa da Folha de São Paulo mostrou que a reaparição da Ilhabela provocara um espanto em média 9,8% menor do que o do seu desaparecimento inicial. O assunto, escreveu um marqueteiro, dava sinais de envelhecimento: já estaria cansando o leitor médio.

As forças armadas tornaram a se mobilizar, interditando imediatamente o acesso a toda zona e ocupando as posições estratégicas anteriores. A ilha foi colocada sob quarentena, antes que passasse pela cabeça de alguém se aventurar até lá. Convocada por seu presidente, o almirante Franchotone Pereira, a CEIFI (Comissão Emergencial de Investigação de Fenômenos a Identificar) voltou a se reunir em sessão permanente em São Sebastião, inicialmente desfalcada de alguns de seus membros, retidos em Miami e em Cancun por obrigações inadiáveis.

Numa deliberação nervosa, a CEIFI resolveu organizar a primeira expedição à ilha reaparecida. Seria uma incursão científico-militar-humanitária com a múltipla missão de investigar os fenômenos físicos ocorridos, medir o nível de radiações, contar e identificar os mortos e reafirmar a soberania nacional no território. Ela também deveria estar capacitada a oferecer primeiros socorros e suporte psicológico aos sobreviventes, se existissem. Por isso, além de representantes da Comissão Nacional de Energia Atômica (CNEA) e do Ministério Público; de parlamentares, oficiais das três armas, repórteres credenciados da Globo, geólogos, inspetores do IBAMA, agentes da ABIN e delegados da Polícia Federal, também um médico e duas enfermeiras do posto de saúde local foram escolhidos para integrar a expedição. Entretanto as enfermeiras recusaram o convite, estavam tomadas pelo medo do desconhecido que, de novo, se apossava da população. Até as altas autoridades civis e militares temiam uma aproximação física à ilha, que não podia ainda ser chamada de fatídica porque se ignoravam as fatalidades que ali tivessem acontecido e ainda pudessem acontecer. E presumindo que a expedição encontrasse sobreviventes necessitando de conforto espiritual, um representante da classe eclesiástica foi convidado para integrá-la.

Atracada no porto, uma corveta estava sendo aprovisionada para a aventura. Mantimentos, ferramentas, equipamento científico e também munição – tudo, até eventualidades violentas estavam previstas.

Do convés, um fuzileiro naval deu o alarme ao avistar pelo binóculo que três embarcações à vela – “o velame parece que é de palha”, observou o fuzileiro – haviam deixado a Ilhabela e cruzavam rapidamente o estreito. Quando encostaram no cais do Aterro, já os esperava uma multidão compacta. À medida que desembarcavam, os 15 passageiros – os primeiros sobreviventes daquele fantástico fenômeno que para a maioria só podia ser sobrenatural – iam causando espanto. Eram estranhas figuras, homens magros e barbudos envergando roupas exóticas. A multidão se conservou a uma temerosa distância. Como um cronista escreveu depois, a cena evocava o desembarque dos descobridores portugueses em 1500, mas ao contrário: desta vez os navegantes é que pareciam uma espécie de indígenas.

De costas para o mar, o pequeno grupo de recém chegados foi acuado pelo semicírculo daquela gente que se acotovelava para conseguir ver o que acontecia. Não acontecia nada, ninguém reconhecia ninguém. Ninguém falava nada, e assim permaneceram durante minutos que pareceram horas, até que se ergueu um vozeirão:

— Todos de joelhos! Vamos dar graças ao Todo Poderoso!

Era o reverendo Silvio Silva (52), bispo da Igreja Reflorescer que, abrindo caminho aos trancos, chegava abraçado a uma grande cruz de isopor – infelizmente sem um dos braços que se quebrara no empurra-empurra do trajeto.

O bispo se ajoelhou e começou a cantar, no que foi seguido relutantemente por uma parte dos presentes, não todos, porque ali havia fiéis de outras crenças e, além disso, quem estivesse ajoelhado não iria ver nada do que podia acontecer. E aconteceu a chegada impetuosa, ao som de sirenes estridentes, de um pelotão de choque da polícia militar acompanhado de dois camburões, dos quais saltaram uns robustos enfermeiros. Com muito profissionalismo, os agentes da ordem agarraram um a um os ilhéus paralisados de susto enquanto enfermeiros lhes enfiavam um traje branco, todo fechado, semelhante ao macacão de apicultor. Eram as roupas de isolamento que a NASA tinha enviado em agosto, juntamente com algumas cabinas de descontaminação, para uso na eventualidade de que surgissem extraterrestres. Havia só 12 trajes brancos para os 15 homens agarrados. Os três excedentes foram metidos em camisas de força e todos levados nos camburões para o Hospital de Clínicas. Lá os fecharam nas ditas cabinas de descontaminação, das quais foi preciso desalojar precipitadamente uma dúzia de macas ocupadas por pacientes do SUS que não cabiam no hospital-dia, lotado.

A comunicação com os recém-chegados e confinados iniciou-se pelo sistema digital de intercomunicação de som e imagem. Da apinhada sala de controle, muitos pares de olhos acompanhavam na tela cada gesto dos quinze que, em silêncio, tratavam de arrancar aquela roupa esquisita e examinavam as paredes à procura de uma brecha para escapar. O almirante Franchotone lhes dirigiu então a palavra:

— Bom dia, amigos, sejam bem vindos! Graças a Deus vocês puderam voltar, sãos e salvos!

Como todos continuavam de boca fechada, o almirante prosseguiu:

— Peço que vocês tenham paciência com o procedimento a que estão sendo submetidos. São precauções sanitárias, para o seu próprio bem, depois de tudo o que sofreram... Tenho a certeza de que logo serão liberados.

Um ou outro disse alguma coisa que ninguém conseguiu ouvir. O almirante perguntou então, meio inquieto:

— Vocês estão me entendendo? Falam português?

Os confinados se agitaram, passaram a gesticular vigorosamente e pareciam gritar, mas não se ouvia som algum, ao que o almirante exclamou:

— Meu Deus. Eles ficaram surdos-mudos!

Os jornalistas saíram correndo da sala para telefonar às respectivas redações, dando esse furo de reportagem. Mas foi precipitação. O que havia era apenas uma pane na instalação de som, devida talvez à maresia. Feita a reparação, as partes puderam, por fim, conversar. O almirante Franchotone retomou a palavra:

— Espero que vocês me entendam. Assim que terminarmos a rotina de exames, vocês poderão tomar banho, receberão roupas limpas e uma refeição. Alguma pergunta?

— Quero encontrar a minha mãe, se ela ainda estiver viva – disse Gesualdo, um dos quinze.

Esta frase, na voz do primeiro sobrevivente ouvido depois da reaparição da Ilhabela, foi gravada e reproduzida pelas emissoras de rádio e televisão do mundo inteiro.

— Mas é claro, logo mais todos vocês poderão abraçar os seus entes queridos – respondeu o almirante com um gesto e um sorriso tranquilizador, que os quinze não puderam ver porque, de onde estavam encerrados, não havia como.

Os contadores Geiger-Müller não registraram nenhuma radiação nos corpos e nas roupas dos ilhéus e o exame clínico só comprovou que ele gozavam de boa saúde – surpreendentemente boa, levando em conta as vicissitudes que aqueles rapazes deviam ter sofrido. Por helicóptero, as amostras de sangue de cada um foram imediatamente enviadas a São Paulo, para análise sorológica na Fundação Pró-Sangue. Os quinze puderam deixar as cabinas de descontaminação mas continuariam confinados numa ala do hospital até que o resultado dos exames permitisse sua liberação.

Banhados e vestindo apenas os sumários aventais de pacientes do hospital (solução de emergência, porque essa precária roupa mal cobria as partes pudendas, enquanto eram compradas calças, camisetas e sandálias havaianas numa loja próxima), eles foram conduzidos a um pequeno auditório onde se daria o ansiosamente esperado primeiro depoimento dos até então únicos sobreviventes. Com exceção de Gesualdo, perfeitamente escanhoado, os demais apresentaram-se de barbas podadas à tesoura porque não sabiam como usar barbeador.

Por razões de segurança nacional, decidiu-se que o depoimento seria a portas fechadas, sem a presença do público e da imprensa. Apenas algumas pessoas gradas e autoridades foram admitidas. O delegado da Polícia Federal, Protorosário da Silva (53), assistido pelo procurador Flausino Marques (48), deu início ao interrogatório. Começou com uma pergunta óbvia:

— Os senhores todos, os quinze aqui reunidos, procedem da Ilhabela?

Os senhores se entreolharam e balançaram afirmativamente as cabeças.

— Devo entender, então, que os senhores habitavam a Ilhabela, estavam na Ilhabela no dia 9 de agosto, quando ocorreu o fenômeno do desaparecimento?

Os quinze tornaram a se entreolhar. Alguns disseram “sim”, “claro”. Outros murmuraram “não lembro” ou “eu nem tinha nascido”.

— Eu pediria então – continuou o delegado, que só reteve as respostas afirmativas – que tentassem relatar o que aconteceu. Onde se escondeu a ilha com toda a sua gente, esse tempo todo?!

Todos começaram a falar ao mesmo tempo, o que levou o doutor Protorosário a golpear a mesa e exclamar:

— Silêncio! Peço que cada um fale por sua vez... começando pelo senhor – disse, apontando para o mais velho do grupo.

— Eu devolvo a sua pergunta – disse Gesualdo.

— Como assim?

— Onde se esconderam vocês, o Brasil, o mundo todo com toda a gente, esse tempo todo?

O grupo ecoou a pergunta, interpelando o delegado:

— Sim! Onde vocês ficaram? Onde é que foram parar?

O procurador Flausino tomou o microfone e exclamou:

— Vocês estão querendo dizer que fomos nós que desaparecemos?

— É claro – respondeu Gesualdo. — A Ilhabela ficou e o mundo sumiu!

Na sala foram se erguendo exclamações:

— Uma loucura!

— Um absurdo!

— Só pode ser muita droga!

O doutor Flausino pediu silêncio e perguntou:

— Os senhores têm notícia de outros sobreviventes?

Gesualdo respondeu:

— Nesse tempo todo teve gente que morreu, é natural. Morreu de velhice, de doença. Mas teve muito mais gente que nasceu. Eu mesmo tenho duas filhas. Nossa população até que aumentou.

Um funcionário passou ao delegado os formulários de identificação que, nesse meio tempo, os quinze tinham preenchido. O delegado os examinou rapidamente e exclamou:

— Ninguém colocou número de RG nem CPF. Assim não é possível! Nenhum de vocês sabe seu número de cor? Vocês sempre viajam sem documentos de identidade?!

Não houve resposta. O doutor Protorosário mostrou os papéis ao doutor Flausino:

— Repare só, doutor, nestas datas de nascimento: 26 de janeiro de dois, 11 de novembro de dois, 3 de agosto de quatro, 27 de junho de três. Etecetera. Ninguém colocou o ano de nascimento.

— Parece molecagem.

Voltando-se para os ilhéus, o delegado elevou a voz:

— Estão querendo debochar das autoridades?!

— Isso é desrespeito, o suficiente para uma denúncia de desacato – acrescentou o procurador.

— Quem é Gesualdo da Silva? – perguntou o delegado.

— Eu.

— O senhor foi o único a colocar o ano de nascimento, 1986. Diz que é natural de São Sebastião.

— Sou, sim senhor.

— O seu domicilio em São Sebastião é rua João Cupertino dos Santos número 127?

— Era onde eu morava com minha mãe, antes do fim do mundo. Já faz 25 anos que eu moro na Ilhabela, na Ponta Azeda.

— Mas, se nasceu em 1986, o senhor tem 21 anos. Como pode afirmar que vive na ilha há 25 anos?

— Olhe para a minha cara, doutor. Eu pareço ter 21 anos?

O delegado e o procurador se entreolharam, fazendo caretas, enquanto um murmúrio percorria a seleta plateia. O procurador tomou a palavra.

— É evidente que o senhor tem bem mais de vinte anos. Por que então mentiu afirmando que nasceu em 1986? O senhor será denunciado por falsidade ideológica.

— O senhor declara que é “administrador público”. Qual é o seu cargo? – perguntou o delegado.

— Sou assistente do chefe de governo.

— De qual governo?

— Do governo de Pedro Iroquês.

— Quem é ele, um pele-vermelha norte-americano?

— Pedro Iroquês é o chefe da Terra, mas vai se aposentar. Logo haverá eleição do novo chefe.

A reunião foi encerrada sem que tivesse esclarecido coisa alguma. Ficou a convicção de que os quinze estavam desvairados (e não era para menos!) e certamente, após um bom descanso, voltariam a si. O que eles menos queriam, naquele momento, era dormir, mas o Dormonid, que o psiquiatra de plantão os obrigou a ingerir, fez efeito em poucos minutos. Foram alojados todos juntos numa sala normalmente reservada para o descanso do pessoal da limpeza. Gesualdo era o único desperto, só fingia dormir. Ele teve a habilidade de aninhar o comprimido debaixo da língua para em seguida cuspi-lo na privada. Depois de tantos anos, ainda se lembrava perfeitamente do lugar. Seu primeiro emprego fora justamente a de faxineiro desse hospital. Não só estivera inúmeras vezes naquela sala como conhecia todas as dependências do edifício.

Depois de meia hora, dois funcionários entraram silenciosamente e colocaram sobre a mesa a pilha de roupas compradas para vestir os quinze. Quando saíram, Gesualdo levantou-se e trocou o avental por calças jeans, camiseta e sandália de dedo. Não tiveram o cuidado de trancar a porta e Gesualdo pôde deixar a sala sem ser visto. Nos corredores passou despercebido por enfermeiras, auxiliares, médicos e policiais. Evitou a entrada principal do hospital e saiu pelo Pronto Socorro, que fica num prédio ao lado. Para chegar ao número 127 da rua João Cupertino dos Santos, a duas quadras dali, precisou passar pela frente do hospital e abrir caminho na aglomeração de gente que lá estava, à espera de novidades. De repente, estancou, paralisado pela surpresa e a emoção: entre aqueles inúmeros rostos, viu o da sua mãe. Gesualdo se precipitou ao seu encontro, empurrando as pessoas e exclamando:

— Minha mãe!

Gesuina se viu abordada por aquele desconhecido. Procurou afastá-lo, dizendo “desculpe, o senhor está me confundindo”, mas o homem tentou abraçá-la dizendo:

— Mamãe, sou o Gesualdo!

— Sai prá lá, meu filho é um moço de vinte anos!

— Eu sou ele! Fiquei preso na Ilhabela. Voltei agora, vim no primeiro barco para procurar você!

Gesualdo pegou Gesuina pelos ombros e a olhou bem de frente, no fundo dos seus olhos.

— Por que não me reconhece, mamãe?! Eu me lembro tão bem da senhora!

Ela ia insistir, “deve haver um engano”, mas vacilou e pouco a pouco a memória materna foi percebendo uma manchinha na íris do olho esquerdo e uma certa inflexão na pronúncia de mamãe...

— Gesualdo?

Gesuina tomou com ambas as mãos a cabeça de Gesualdo e a aninhou docemente no seu ombro. Seus dedos afundaram nos cabelos já ralos de uma calvície incipiente e acharam – lá estavam, na região parietal, os dois rodamoinhos inconfundíveis, o direito girando no sentido dos ponteiros do relógio, o esquerdo no sentido inverso.

— Você é mesmo o meu filho? Meu Deus, o que fizeram com você?!

Em pouco tempo, todas as pessoas próximas tinham dado as costas para o hospital e estavam voltadas para a comovente cena. A informação de que um dos quinze estava solto na rua chegou à chefia da segurança e quatro policiais foram recapturar Gesualdo. Gesuina não se deixou apartar:

— Ele é o meu filho! Se vocês o levarem eu vou também!

O delegado Protorosário foi chamado às pressas e iniciou o interrogatório. Gesualdo estava algemado, com a mãe ao lado:

— Tentando fugir, malandro!

— Não sabia que estava preso. E assim que cheguei eu avisei que queria ver a minha mãe.

— Sua mãe, hein? Qual é a sua idade?

— Quarenta e seis anos.

— E a senhora, dona Gesuina, quantos anos tem?

— Quarenta e seis.

O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!

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O redescobrimento

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