José Carlos Ruy: Os cem anos de Nelson Werneck Sodré
Uma visão histórica e política sobre o historiador marxista.
Deborah Dubner
Um dos maiores entre os intelectuais e historiadores marxistas brasileiros completaria cem anos de idade no último dia 27 (quarta-feira): Nelson Werneck Sodré, que foi militar (passou para a reserva do Exército em 1961 como general de brigada), mas se tornou notável como escritor, pesquisador e professor.
Nelson Werneck Sodré é um desses autores com os quais não é necessário concordar com suas teses para reconhecer sua importância: ela se impõe pelo volume da obra (registrada em nada menos que 58 livros), na enorme abrangência de seus interesses, na inovação com que tratou os temas e na descoberta de novas fontes documentais para a historiografia, novos enfoques para sua compreensão e de uma forma inovadora de compreender o passado.
São livros de enorme interesse científico. Mas eles estiveram, substancialmente, ligados a outra linha de interesses: a busca de uma intervenção concreta na luta para resolver os problemas brasileiros e influir nas forças sociais empenhadas nessa tarefa.
Foi a partir destas exigências que Sodré examinou o passado brasileiro - seja como professor de história militar na Escola de Comando e Estado–Maior do Exército (da qual foi desligado em 1951 devido às suas posições políticas alinhadas com o Partido Comunista do Brasil); seja como dirigente do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), um órgão de estudos avançados subordinado ao Ministério da Educação e Cultura; seja como intelectual marxista que teve grande influência no debate programático do PCB, nas décadas de 1950 e 1960.
Foi um dos formuladores do nacional-desenvolvimentismo que, naqueles anos, teve influência decisiva na política comunista e que recomendava a aliança dos trabalhadores com o setor que, então, era conhecido como “burguesia nacional”, em busca do desenvolvimento brasileiro. O golpe militar de 1964 desfez as ilusões no sucesso de uma aliança desse tipo principalmente porque a enorme maioria daquela “burguesia nacional” aderiu ao novo regime.
Se esta é uma limitação política de suas formulações, ela ficou no passado e deve ser lembrada como parte dos percalços de um intelectual que não fugiu às tarefas de seu tempo. Mais permanente e valiosa foi sua participação no debate sobre a formação histórica da sociedade brasileira e a natureza da revolução em nosso país.
A partir das indicações marxistas mais avançadas da época, ele procurou adaptar o esquema de cinco modos de produção sucessivos (então hegemônico entre os marxistas) para o estudo de nosso passado: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e, depois, o socialismo. Hoje, mais de meio século depois, e em virtude dos ganhos historiográficos (o avanço na pesquisa do passado brasileiro) e teóricos (a superação daquele esquema de cinco estágios), é fácil apontar limitações em suas formulações.
São as desventuras da ciência. Entretanto, é preciso advertir que aquelas formulações contribuíram para o avanço no conhecimento do passado colonial e que, ao vislumbrar – a partir da compreensão marxista então mais aceita – que são as relações de produção que prevalecem na definição de um modo de produção, e não as relações de distribuição, que foram a ênfase da outra corrente da historiografia marxista brasileiro filiada às ideias de Caio Prado Junior.
Ao enfatizar as relações de produção, Nelson Werneck Sodré identificou um passado feudal em nosso país, identificou a importância da escravidão na organização do trabalho e da produção e abriu, assim, as perspectivas mais corretas, do ponto de vista marxista, de análise da sociedade brasileira.
A extensão da obra de Nelson Werneck Sodré decorre também dessa inquietação. Ele investigou as formas de pensar, a literatura, o jornalismo; estudou as classes sociais e a formação do povo. Seu primeiro escrito publicado foi um conto, na revista O Cruzeiro, em 1929. Nunca mais parou, e escreveu até deixar de viver, em 1998 – foram quase setenta anos de atividade literária e científica para em entender o Brasil em profundidade. Comunista e patriota, lutou pelo progresso social e pela soberania nacional mesmo nas condições mais adversas, como a ditadura militar de 1964 ou o período de hegemonia neoliberal na década de 1990. Aliás, o objetivo de seu último livro, A Farsa do Neoliberalismo, de 1995, está expresso no próprio título: a desmontagem teórica daquele sistema que, naquele ano, passava a controlar a presidência da República com a posse de Fernando Henrique Cardoso.
Foi um gigante cuja obra só pode ser criticada porque, pelo mero fato de existir, foi fator de impulso ao conhecimento histórico. Ajudou os brasileiros a se conhecerem melhor a si próprios e a seu país. No seu centenário, a festa é também de todos os marxistas brasileiros.
*Este artigo foi publicado no portal vermelho.org.br no dia 27 de Abril de 2011 e o autor autorizou sua reprodução neste espaço.
José Carlos Ruy é jornalista e historiador. É editor do jornal Classe Operária, da equipe do portal Vermelho e da Comissão Editorial da revista Princípios. Foi das equipes do Movimento (de 1977 a 1981); dos vários formatos (fascículo, jornal diário e depois semanários e, mais tarde, revista) do Retrato do Brasil (desde 1986); colaborador das revistas Reportagem, Debate Sindical, Presença da Mulher; co-organizador dos livros Um Olhar Negro Sobre o Brasil e Contribuição à História do Partido Comunista do Brasil. Na imprensa convencional, atuou na Enciclopédia Larousse Cultural, no Departamento de Documentação (Dedoc) da Editora Abril e no Centro de Documentação (Cedoc) da Editora Globo; autor de inúmeros artigos sobre história, história do Brasil, cultura, literatura e filosofia. Foi membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (1997 a 2009); é membro do conselho curador da Fundação Maurício Grabois.