Secretário da Cultura comenta obra de Werneck Sodré
Jonas Soares de Souza escreve sobre "Oeste", editado em 1941
Salathiel de Souza
Oeste, de Nelson Werneck Sodré (Livraria José Olympio Editora, 1941) é um estudo sobre a colonização pastoril do sertão de além-Paraná, produzido no início da década de 1940 por um grande conhecedor do território hoje pertencente ao estado do Mato Grosso do Sul. Aluno da Escola Militar do Rio de Janeiro, ao alcançar o oficialato Nelson Werneck Sodré serviu nas guarnições de Jundiaí e Itu entre 1934 e 1937, e são desse período suas primeiras incursões na região de Campo Grande, acompanhando tropas em movimento de exercício. Em março de 1938 passa a servir na guarnição de Campo Grande e integra a campanha militar contra os grupos de bandoleiros que assolavam os chapadões do oeste. Depois dessa experiência, serviu novamente em Itu e em seguida na capital paulista, ali permanecendo até dezembro de 1941, ano em que foi promovido a capitão e no qual a Editora José Olympio publicou Oeste, na Coleção Documentos Brasileiros. Ao escrever esse livro Sodré valeu-se mais de suas observações diretas e vivência militar do que da análise de dados estatísticos, documentos e bibliografia [1].
Na vasta produção do autor, Oeste não tem os mesmos nível e significação daquelas obras de “textura substantiva”, embora, como salientou José Paulo Netto, no caso de Sodré “não há que opor o caráter testemunhal à substantividade”. Memóriasde um soldado, por exemplo, “além de ser texto muitíssimo bem construído, dos mais belos da memorialística brasileira – é um extraordinário painel sócio-político da vida de nosso país, cobrindo todo o segundo terço deste século”. Por outro lado, cabe ressaltar a autocrítica de Sodré acerca de Oeste, registrada em Memóriasde um escritor: o autor “não tinha o domínio das informações e das ciências necessárias à pintura de um quadro tão amplo”.
José Paulo não vê esse gênero de discriminação como essencial para uma primeira aproximação ao conjunto da obra de Sodré. A seu juízo, essa aproximação reclama a distinção de dois momentos na evolução intelectual e na produção de Sodré, cujas fronteiras são demarcadas pela sua participação na direção do Clube Militar e o seu ingresso no Iseb na década de cinqüenta. Não se trata, alerta José Paulo, de visualizar um “corte” entre tais momentos ou de pensar a produção do primeiro momento como uma espécie de “idade da pedra” de Sodré. Mas de levar em consideração que as experiências aludidas levaram-no a uma revisão dos seus supostos teóricos e, “dada a sua conseqüência como pesquisador, a um tratamento diverso às temáticas que já antes saturavam o seu universo de problemas”. Ao longo da sua produção alteraram-se os recortes analíticos e os suportes teóricos e metodológicos, mas o conjunto da sua obra desvela uma preocupação fundamental: a compreensão da particularidade histórica brasileira, como apontou José Paulo, um profundo conhecedor da trajetória intelectual de Sodré [2].
Oeste, publicado em 1941, é um dos livros do primeiro momento. O livro não teve reedição, a não ser a edição fac-símile impressa em 1990 pelo Arquivo do Estado de São Paulo, sem a reatualização crítica que mereceram as reedições de outras obras da mesma fase.
Sodré de certa forma justifica o seu estudo lembrando que a grande conquista do Oeste, feita pelos homens do planalto de Piratininga, teve dois instantes nítidos: o “ciclo das bandeiras” e o “ciclo das monções”. Cumpre-nos acrescentar nesse desenvolvimento, diz Sodré, o “ciclo pastoril”. Se, sobre o fenômeno bandeirante e as monções, a documentação é extensa e fecunda, sobre o desenvolvimento pastoril os dados se mostraram insuficientes para fundamentar conclusões formais. A primeira fase da expansão pastoril, que se deu em terras desbravadas pelo próprio movimento de expansão, tem cronistas e escritores de mérito. A segunda fase dessa expansão, aquela que se afirmou pela posse efetiva de terras já descobertas, percorridas e conquistadas definitivamente pelo elemento humano, é de uma pobreza de documentos e cronistas. É natural, explica Sodré, a cultura pastoril é fundamentalmente rústica e visceralmente pobre. Demasiadamente econômica em sinais visíveis, pouco deixou de si. Na colônia, o dominador teve dois motivos de rancor contra a cultura pastoril. O primeiro, porque ela não pesava no fisco. O segundo motivo não era menos forte: o vaqueiro tinha uma enraizada aversão ao domínio. Abandonou o litoral e penetrou no sertão, desceu e subiu rios e vales nessa constante fuga à autoridade, ao fisco e ao mando dos homens da coroa que, “arranhando o litoral”, no dizer de frei Vicente Salvador, nele fixavam a organização do fisco e da repressão. O vaqueiro não deu de si cronistas brilhantes e nem ofereceu, com os seus próprios recursos, sinais visíveis de sua passagem territorial e de seu avanço econômico. A cultura canavieira, além dos sinais externos de sua existência, teve seus cronistas, que deixaram documentos, cartas e livros. A lavoura cafeeira teve a felicidade de encontrar os seus comentadores, que explicaram os seus rumos e peculiaridades. A mineração produziu poetas, narradores e historiadores. Só a cultura pastoril não teve a mesma sorte: nômade e dispersiva, sem acarretar a fixação, deixou poucos sinais exteriores e documentos. É essa fase quase desconhecida que Sodré se propõe a estudar, para entender as razões da pobreza do Oeste em seu tempo.
No final do século XVIII a grande conquista do Oeste era obra acabada em termos de extensão. As grandes rotas de penetração estavam abertas, havia núcleos de população e até centros de uma incipiente riqueza. É nesse período que se dão as primeiras penetrações de gado, graças ao capricho de uma hidrografia favorável. As nascentes dos formadores do São Francisco aproximavam-se das nascentes dos formadores do Paraná. Os campos abertos,as passagens obrigatórias e os pontos em que as vias fluviais permitiam vau eram um convite para a passagem, das terras de Minas Gerais para as terras de Goiás e Mato Grosso, dos rebanhos que marchavam continuamente. Estava iniciada a conquista pastoril que se estenderia por quase todo o território palmilhado pelo bandeirismo e pelos homens das monções.