Opinião

Publicado: Quinta-feira, 27 de junho de 2013

Laurentino Gomes: O medo das ruas na história republicana brasileira

Uma visão sobre as manifestações no Brasil à luz da História

Crédito: Arquivo Pessoal Laurentino Gomes: O medo das ruas na história republicana brasileira
A república chegou em 1889 prometendo educar as pessoas, respeitar e ampliar os direitos civis, mas logo se converteu em ditadura. No ano da Proclamação da República, 80% dos brasileiros ainda eram analfabetos.

O Estado brasileiro sempre teve medo da rua. Por uma razão muito simples: no período de construção desse Estado, até final do século 19, o Brasil foi um país marcado pelo analfabetismo, pela escravidão, pela pobreza, pelo latifúndio e pelas rivalidades regionais. Esse é um tema que perpassa vários capítulos do meu próximo livro, 1889, sobre a Proclamação da República, a ser lançado no final de agosto.

Estima-se que em 1808, ano da chegada da corte portuguesa ao Brasil, cerca de 99% dos brasileiros fossem analfabetos. De cada três habitantes, um era escravo. Era uma população pobre e carente de tudo, que vivia à margem de qualquer oportunidade em uma economia agrária e rudimentar, dominada pelo latifúndio e pelo tráfico negreiro. O medo de uma rebelião dos cativos assombrava a minoria branca. Como construir um país democrático, livre e participativo em um cenário assim? O mineralogista José Bonifácio de Andrada e Silva ecoava as preocupações da elite em 1812 com o seguinte comentário: “Amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo em um corpo sólido e político”.

Sessenta e cinco anos mais tarde, em 1877, o grande abolicionista pernambucano fazia observação semelhante com palavras diferentes: “Deve ou não o povo participar da política, pelas condições especiais em que nos achamos, de território, de população, de trabalho escravo e de distribuição de propriedade?” Em outras palavras, seria possível fazer um Brasil homogêneo, coerente e funcional com tantos escravos, pobres e analfabetos, tanto latifúndio e tanta rivalidade interna? É um dilema que se manteve presente na história brasileira durante todo o primeiro e o segundo reinados. Foi um desafio que a monarquia não conseguiu resolveu. O império era grande e, aparentemente, poderoso, mas tinha pés de barro calcados na escravidão, no analfabetismo e no latifúndio.

A república chegou em 1889 prometendo educar as pessoas, respeitar e ampliar os direitos civis, mas logo se converteu em ditadura sob Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. No ano da Proclamação da República, 80% dos brasileiros ainda eram analfabetos. Os escravos, libertos no ano anterior, foram abandonados à própria sorte. O medo das massas fez com que o poder republicano mantivesse o temido povo ficasse à margem do processo de decisão. Na Política dos Governadores, também conhecida como Política do Café com Leite, inaugurada por Campos Salles em 1898, o índice de participação eleitoral no Brasil era inferior à dos últimos anos do Império. E assim se manteve até 1930. A partir daí a história republicana é marcada por golpes e ditaduras, com brevíssimos períodos de democracia. “A república” escreveu o jurista e sociólogo Raimundo Faoro, “descarta-se, como o Império (…), do mais sedicioso e anárquico de seus componentes: o povo”.

As manifestações dos últimos dias mostram que o Brasil está mudando. A festa dos jovens nas ruas funciona como aragem de ar fresco nessa história autoritária e de exclusão. Mas algumas coisas precisam ser levadas em conta. Menos de dois anos atrás, muitos desses mesmos jovens pregavam voto nulo nas eleições presidenciais. A participação dos jovens nas últimas eleições foi uma das menores em todos os tempos. Democracia sem voto não funciona. Pregar voto nulo é fazer jogo dos corruptos, que chegam ao Congresso com base no clientelismo e no coronelismo que sempre imperou na política brasileira. Os partidos no Brasil são fracos e, na maioria das vezes, corruptos, porque o brasileiro, infelizmente, não participa da atividade política.

Os brasileiros em geral cobram tudo do Estado, mas relutam em participar da atividade política. Querem um país menos corrupto, criticam o Congresso e as autoridades, mas pregam o voto nulo nas eleições e muitas vezes, no dia-a-dia, são violentos, espertinhos e desonestos nas relações pessoais. Foram fila, jogam lixo na rua, avançam o sinal de trânsito vermelho, correm pelo acostamento, corrompem o guarda quando necessário, fazem barulho até de madrugada sem se preocupar como sono do vizinho. Ou seja, a sociedade muitas vezes cobra do Estado padrões de ética e cidadania que não são cultivados nas relações individuais. Quando o brasileiro decide se manifestar politicamente, é sempre em tom de catarse, como nos jogos da Copa do Mundo e no Carnaval. Há a catarse do vandalismo (minoritário, felizmente), mas também há a catarse ufanista, da chamada “festa da democracia nas ruas”, que de festa não tem nada. Democracia na base do grito não funciona.

Democracia sem partidos e instituições fortes é fraca e corre o risco de descambar em golpe, como já aconteceu várias vezes no passado. Para mudar esse cenário, é preciso que a revolta nas ruas se converta em voto consciente no próximo ano e participação ativa, cotidiana na atividade política. Isso dá trabalho, é menos festivo do que o espetáculo das bandeiras nas ruas da última semana, mas não existe outra maneira de construir o futuro de forma organizada e estruturada, rumo ao Brasil com o qual todos sonhamos.

Laurentino Gomes é paranaense de Maringá e morador da cidade de Itu. É quatro vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura com os livros 1808, sobre a fuga da corte portuguesa de D. João VI para o Rio de Janeiro, e 1822, sobre a Independência do Brasil. Sua obra também foi eleita o Melhor Ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, com pós-graduação em Administração pela Universidade de São Paulo, é membro honorário da Academia Ituana de Letras (Acadil).

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