Katia Auvray: "Itu, da Colônia à Modernidade: onde está Diniz?"
Camila Bertolazzi
É atributo do contemporâneo enaltecer as características da modernidade: os avanços nas telecomunicações, na engenharia molecular, a revolução digital, a tecnologia de ponta empregada na construção civil e, pelo que se tem observado no campo da História, a tendência para se reescrever os fatos, eliminar personagens, fundir tempos distintos ou se apossar dos louros pertencentes a outrem, como ocorre em Itu, município do interior paulista, também nas comemorações de seus 400 anos de fundação.
A imagem "do fundador da cidade de Itu, Domingos Fernandes" (sic) foi instalada na Praça da Independência (antigo Largo do Carmo). Uma homenagem "ao fundador" teve curso com uma caminhada sob luzes de velas no centro da cidade. Até então, era notório e sabido que a antiga Utu-Guaçu foi fundada por Domingos Fernandes e seu genro, Cristóvão Diniz. Um ator caracterizado como Fernandes atuou com outros, trajados com roupas da época, fazendo uma viagem no tempo. Em que tempo?
Talvez a distância entre a Itu colonial de 1610 e a atual republicana de 2010 tenha sido suficiente para transformar em pó não apenas os corpos de seus personagens, mas, também, sua memória. Lamentável. “Os presentes à cerimônia, jovens, adultos e até mesmo idosos, registraram como verdadeira a pantomima, consubstanciada pela presença única ‘do fundador’”. Onde está Diniz?
Fato semelhante ocorreu com os padres Antonio Pacheco da Silva, pioneiro no recolhimento dos lázaros e fundador do hospital e que os abrigava, em 16 de março de 1807, bem como da capela - aquela que ainda está lá, bem cuidada, no bairro Padre Bento - e Bento Dias Pacheco, cujo sobrenome era Ferraz - um “digno imitador” do padre Antonio, conforme o classificou o historiador ituano Francisco Nardy Filho, que deixou documentada sua preocupação com a preservação da memória do padre Antonio. Ainda assim, no século 21 apenas Bento recebe homenagens. O outro, o Antonio, sequer existe.
Outro fato erroneamente reiterado pelos ituanos contempla a importante fábrica de tecidos São Luiz, fundada por um grupo de investidores em 1869 e alardeada como a primeira fábrica a vapor do estado de São Paulo. O merecido título pertence a Manuel Lopes de Oliveira Rodrigues, fundador de uma fiação estabelecida em Sorocaba/SP, em 1857.
Itu tem mesmo uma riquíssima e importante história. Foi a vila mais abastada da capitania de São Vicente, entreposto comercial na rota entre o Sul do país e as regiões mineradoras de Mato Grosso e Goiás e cabeça de Comarca, abrangendo seis vilas: Apiaí, Campinas (São Carlos), Itapetininga, Itapeva, Porto Feliz e Sorocaba, além de quatro freguesias: Cabreúva Capivari, Indaiatuba e Monte Mor (Água Choca). Sua jurisdição ia de Franca a Curitiba. Teve engenhos movidos à mão-de-obra escrava, fazendas de café, ferrovia e importantes fábricas, além de sediar a Convenção Republicana.
Na modernidade, falta a seu povo, tão orgulhoso de seus feitos, zelar para que a trajetória percorrida não seja maculada por interesses obscuros ou, até mesmo, por desconhecimento ou descaso.
Que a penumbra gerada pelas velas que acompanharam o cortejo para o "fundador único" não encubram, de uma vez para sempre, a do coautor Cristóvão Diniz. Amém.
Katia Auvray é professora de História. Fomentou e desenvolveu inúmeros projetos de pesquisa de campo com alunos de escolas de Itu, resgatando a memória de bairros como o Brasil e o Santa Terezinha. Historiadora e escritora, é autora do livro "Cidade dos Esquecidos - A vida dos hansenianos num antigo leprosário do Brasil".