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Publicado: Quinta-feira, 5 de julho de 2012

Despedida de um nômade

Despedida de um nômade

Hoje me despeço da vida nômade, após 10 anos vivendo no mundo, sendo um cidadão do mundo, sem lugar, sem vínculos.
Dia 13 de junho deste ano troquei o Kiluanba (meu ex motor home) por outro que se foi hoje.

Extraí o que desejava desse estilo de vida, percebi que as cenas se repetiam, que os aprendizados começavam a ser insuficientes, conclui então que completei o ciclo.

Quando saí para o mundo há 10 anos em um veleiro, as pessoas me chamaram de louco. Quando troquei o veleiro para morar em um Jeep achavam que eu tinha surtado. Quando fui morar em um motor home tiveram certeza.
Hoje volto para a vida de um “mortal” e, por incrível que pareça, me chamaram de louco, dizendo que eu não poderia deixar a vida nômade.

Eu sempre trabalhei com informática e nunca havia percebido que o mundo é binário: os computadores só sabem contar zero e um. Fazem processamentos absolutamente incríveis baseados em apenas dois números.
O mundo é binário, tem dois lados. O aceso e o apagado, o ligado e o desligado, o frio e o quente, o amargo e o doce, o amor e o medo, a tristeza e a alegria.

Para se conhecer realmente o mundo é necessário viver os dois lados, sem teorias.
Eu fui fundo em ambos, fiz coisas absolutamente incríveis trafegando intensamente em cada lado.
Tenho um amigo que foi mendigo e um que é presidente da maior cervejaria do país, um amigo analfabeto e um reitor, tive uma namorada que era vendedora de empadinhas na fila da balsa e outra que tinha seu jato particular. Eu neguei o pão e ajudei a igreja a coletar donativos. Eu fui o carrasco e o anjo, senti a alegria que dificilmente um ser humano sentiria e a tristeza que poucos puderam provar. Eu adquiri o perfeito equilíbrio através do Yoga e cai na areia da praia por 2 dias de tanta loucura, dancei nu no balcão de um bar e a valsa em um baile de debutantes. Cantei o Mantra e os piores funks nos piores lugares, passei o natal só em um posto de gasolina e fui a uma festa em uma ilha particular lotada de amigos. Eu meditei e me perdi por não conseguir pensar. Beijei o padre pedindo sua benção e beijei a filha, a mãe e a avó. Bebi champanhe no Cassino Conrad em Punta Del Este e a pior cachaça em um forró no Morro do Alemão no Rio. Eu vi a menina que foi vendida por seu pai e o doce beijo de uma mãe. Eu vi a miséria e a riqueza, eu fui de todos os lugares e de lugar nenhum, de todas as mulheres e de mulher nenhuma, eu cheguei à beira do inferno e também ao topo do céu.

Afirmo que vivi intensamente os dois lados da vida, isso me fez aprender.
Aprendi a não ter preconceitos.
Aprendi que um gay pode ser meu melhor amigo mesmo que eu não seja um, que fazer um almoço para um amigo lixeiro é algo grandioso, que ajudar o pobre é divino, que entender e aconselhar uma prostituta fez a diferença para ela e para mim, que pessoas de outras raças poderiam ser meus filhos, que o carrasco pode ser bom.
Aprendi a amar e permiti ser amado.
Aprendi que devemos ser felizes sob qualquer condição, que nossa altura é igual a dos outros, que devemos ser humildes, que não devemos julgar e que devemos perdoar.
Aprendi a escutar, aprendi que a vida é curta e que temos a obrigação de viver com amor, que o início da transformação está na gratidão, ser grato pelo que se tem.
Aprendi que não existe o certo e o errado, que eles são relativos e que o errado é o que meu coração diz não ser bom.
Aprendi a enxergar o meu tamanho frente às ondas enfurecidas do mar, a ficar doente e só em um motor home, a perder a esperança algum dia.
Aprendi a praticar o desapego, porque entendi que a única coisa que tenho é a mim mesmo.
Aprendi muito para escolher meus caminhos, saber onde estou e para onde quero ir.

Provei tudo que a vida me ofereceu, penso que não deixei de fazer nada que desejei, não me reprimi em nada.
Meus fantasmas se foram junto com meus medos.

Sou grato por ter tido a oportunidade de ter vivenciado isso tudo.
Penso em tudo com gratidão, felicidade e amor, mas não voltaria um segundo de minha vida, nem hoje nem nunca, o presente é que vale.
A vida é curta demais para repetir sensações, quero provar o novo, mesmo que ele se origine do velho.
Quero continuar provando os sabores que a vida me oferece, mas de uma forma mais normal ou anormal, já não sei mais a diferença entre eles. Hoje pra mim quase tudo é normal.

Tenho em minhas mãos uma vida que acaba de nascer, inteiramente nova.
Estou escrevendo a primeira página desse novo livro.
É hora de buscar o vento que me levará por novos caminhos.
Quem sabe uma casa normal, quem sabe um grande amor, quem sabe quais as boas surpresas que a vida me reserva.

O que me deixa mais contente é ter vendido o Kiluanba para um ser absolutamente incrível, seu nome é José Antonio. Tenho certeza que ele vai continuar com a essência que o Kiluanba me deu, a felicidade eterna.
O motor home de José Antonio veio para mim e foi vendido a outro ser incrível. Seu nome é Jorge.
Jorge não foi à beira do inferno, ele foi ao inferno e hoje está no céu, escolheu seu caminho.
Hoje Jorge e sua mulher Talyta, andam pelo mundo ajudando pessoas que necessitam de Deus.
Ele faz palestras e ela canta em igrejas, penitenciárias, e muitos outros lugares.
Arrecadam donativos e distribuem aos necessitados.
O motor home será usado para esse fim.
Eu não poderia ter vendido para pessoas melhores.

Finalmente quero agradecer a Deus por ter tido a oportunidade de ter vivido essa vida nômade.
Dos 6 anos em que tive o motor home, metade do tempo eu vivi pelas ruas. Dos 2 anos em que vivi em um veleiro, apenas peguei tempestades. Por isso também agradeço pela proteção que tive, nunca sofri nenhum tipo de atentado, sempre voltei ao porto seguro.
Quero agradecer finalmente a todos que passaram por meu caminho, que de uma forma ou de outra fizeram parte de minha vida, que me ajudaram a escrever as páginas de minha vida.

Em cada momento de minha vida adoto uma música, a que mais me fala ao coração hoje é a música Encantado de Ney Matogrosso, se quiser ouvir acesse o link http://www.youtube.com/watch?v=MwNs-sKknqc
Ilustro esse pensamento com a minha foto, um ser sobrevivente, que viveu intensamente os dois lados da vida e escolheu seu caminho.
Minha vida nômade se foi, mas meus pensamentos escritos continuam. Até a próxima.

Um beijo no coração de todos,

Beto Pupo

Beto Pupo foi um nômade que viveu no mundo por 10 anos.
Já morou em um veleiro, em um Jeep e por 6 anos viveu em seu motor home. Atualmente escreve livros digitais e é um E-book designer.
Suas crônicas são baseadas na vivência que adquiriu neste período nômade

Site: WWW.betopupo.com
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