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Publicado: Quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Unicórnio Azul

Em 86, viajei a Cuba para um encontro internacional de educadores: Pedagogia 86 - Encuentro de Educadores por un Mundo Mejor. Do evento fizeram parte mais de 3.500 professores do mundo todo, em maior quantidade os da América Latina e Caribe. Além da participação no congresso, quando então trocaram-se enriquecedoras experiências profissionais, pudemos conhecer um pouco da tão discutida ilha. As realizações na educação e também no campo da saúde, a Habana Vieja com suas construções do período colonial e também a beleza natural das praias de Varadero. Incluido nas programações oficiais, afora as visitas aos centros educacionais, estava um show, no Teatro Karl Marx, com dois expoentes da chamada nova trova cubana, Silvio Rodriguez e Pablo Milanes. No inesquecível espetáculo protagonizado pela dupla, pudemos ouvir, ao vivo e à cores, interpretações de famosas canções, como a belíssima Yolanda.
Já conhecia, aqui no Brasil, alguns trabalhos desses compositores caribenhos, mas ainda não possuia nenhum disco, apesar de algumas edições nacionais. Resolvi trazer um ou outro, também como lembrança da viagem. Um dia, percorrendo uma das ruas de Havana, encontrei uma loja de discos e pude conhecer toda a discografia de Silvio e Pablo. Do primeiro, o que mais aprecio, comprei uns 4 LPs, entre os quais um, de rara beleza, denominado Unicórnio. A capa é muito bonita e alegre. Baseada num afresco renascentista, ela mostra um bosque atravessado por um pequeno riacho, onde nadam marrecos selvagens e algumas outras aves. Ao lado, na relva, sentado sob uma frondosa árvore, um trovador toca e canta a uma donzela que agrada um belo cavalo azul de corno na testa. Completam a bonita paisagem alguns outros unicórnios pastando ao fundo, um colorido arco-íris, pássaros que sobrevoam o local, coelhos, rãs, veados e outros animaizinhos selvagens.
Uma vez de volta, logo que houve oportunidade, uns dias após a chegada, comecei a ouvir os discos comprados. Quando escutei, pela primeira vez, o Unicórnio, fiquei apaixonado pela canção que dá título ao LP. São igualmente belas, letra e música. Sempre que paro a pensar nas coisas da vida, quando possível coloco o disco e não canso de ouví-la. A canção fala de um unicórnio azul perdido e pede notícias do animal. A cantiga fez enorme sucesso em várias partes o mundo. Conta, Silvio Rodriguez, na apresentação do LP, ter recebido inúmeras fotos, postais, livros, desenhos e cartas nas quais os remetentes diziam saber onde se encontrava o raro animal. Um caso, em particular, ele destaca: o de um jovem salvadorenho, adolescente e já na sangrenta luta que durou mais de uma década em seu país. Quando nas montanhas, em El Salvador, Juan José foi ferido, capturado e torturado. Uma vez de volta, num encontro com o poeta cubano, Juanito lhe disse que havia visto, trotando, com uma aguerrida tropa de humildes, nas montanhas salvadorenhas, o belo animal que ele tanto procurava. É um sublime registro da singular beleza no fato do garoto não ter perdido a capacidade de sonhar, apesar da brutalidade que é uma criança estar lutando com armas em punho.
Há várias interpretações para a canção de Rodriguez. Para alguns, entre os quais eu me incluo, a metáfora do unicórnio azul representa aquilo que buscamos, o que continuamente procuramos: a felicidade, a alegria, a harmonia e a beleza do mundo. O unicórnio azul figura as nossas utopias, aquilo pelo que vivemos e pelo que lutamos cotidianamente. Após ouvi-la muitas vezes, adotei também a busca. Achar o unicórnio passou, para mim, a ser algo de elevada importância. Continuamente penso: preciso encontrar o unicórnio, descobrir onde ele está. Sempre me vem à mente uma frase da apresentação do disco, na qual diz Rodriguez: - É estranho, mas algumas pessoas vêem coisas onde não há ou, o que é pior, não podem ver as coisas que certamente existem.
Já tem quase oito anos o primeiro contato com a canção. Continuo, cada vez mais intensamente, na busca do gracioso cavalo de corno. Cotidianamente leio sobre as guerras, a miséria, a fome, a violência e tantas outras ações (des)humanas que não permitem a aproximação do animal. Mesmo assim, todos nós que acreditamos na possibilidade de realização dos sonhos, das nossas utopias, devemos seguir procurando. Ele está por perto, bem mais do que imaginamos. Penso que a felicidade está nas pequenas coisas, em locais simples, e não onde queremos, muitas vezes, buscá-la ou colocá-la. Ouça a canção, ouça várias vezes e junte-se aos que buscam. E, se alguém tiver informações sobre um cavalinho azul com um corno na testa, mande notícias. Temos o que conversar.

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