Uma reflexão sobre o argumento de "O Fiel Jardineiro"
A responsabilidade das multinacionais farmacêuticas frente à “condominialização” dos benefícios das invenções medicamentosas.
O longa metragem “The Constant Gardener” ou, conforme título em português, “O Jardineiro Fiel”, recentemente premiado com o “Oscar” de melhor atriz coadjuvante para “Rachel Weisz”, direção do brasileiro Fernando Meirelles, apresenta como pano de fundo a desumana problemática dos testes de medicamentos fabricados por multinacionais farmacêuticas européias e da América do Norte, ainda não prontos para o consumo, em países africanos, no caso o Quênia, onde a pressa e a lógica do lucro incessante acabam por conduzir milhares de seres humanos à morte prematura.
Não é de hoje que se constata o tratamento dispensado pelos países considerados “desenvolvidos” àqueles países localizados no hemisfério sul do planeta ou aqueles mais prejudicados pela pobreza e pela miséria. E é justamente neste exemplo, trabalhado no referenciado filme, que se pode verificar a crueldade da corrida desenfreada pelo lucro e da deslealdade com os princípios mais basilares da existência do homem.
Meirelles, conhecedor da realidade brasileira, especialmente a dos grandes centros populacionais brasileiros, onde reina o descaso governamental e da sociedade civil pela situação de indigência de boa parte da população, apresenta em seu trabalho como ainda pode ser pior todo este contexto em lugares onde o mundo não acredita que hajam pessoas e com direitos básicos a serem respeitados.
O poder de determinados grupos econômicos, tal como o das multinacionais farmacêuticas, é tão grande e desproporcional que é capaz de interferir determinando até mesmo as políticas governamentais para a saúde e economia dos respectivos países em que instalam suas filiais para especularem e aumentarem seu capital e o valor das ações de seus sócios. Contribuem para esta conduta o fato de estes países ainda estarem imersos em sistemas legais antiquados e altamente corrompidos por séculos e séculos de desordem política, econômica e social, na maioria dos casos iniciada por colonizações de exploração e degradação de territórios e pessoas por estes mesmos países que agora encontram outras formas de espoliação e extração das riqueza que antes levavam com caravelas à luz do dia.
O sistemas de proteção à propriedade, inclusive o da propriedade intelectual das invenções medicamentosas, são o mecanismo de garantia destas empresas multinacionais de que recuperarão tudo o que investiram em décadas de P&D. É que se fosse somente recuperar os investimentos feitos tudo estaria equilibado, mas não é o suficiente e empreende-se a partir daí uma corrida incansável por mais e mais lucros. Mecanismos como o do “Certificado Complementar de Proteção para Medicamentos e Produtos Fitofarmacêuticos” [previsto pelos Regulamentos (CEE) n. 1768/92 e n. 1610/96 do Parlamento Europeu e do Conselho] ou a possibilidade de patentear produtos com novos usos, dentre outros, tem ajudado a beneficiar esta corrida, na medida em que alargam o prazo de detenção do título patentário para exclusividade na exploração comercial destas invenções.
Onde se pretende chegar com toda esta lógica de destruição das riquezas naturais e de degradação da dignidade das pessoas, vítimas destas economias mercantis e excludentes? A tendência mundial das privatizações e “condominializações” tem construído uma realidade em que as pessoas que possuem os bens econômicos e os meios de sua produção enclausuram-se em condomínios privados de habitação para escapar da violência das cidades, colocam seus filhos em escolas particulares para garantia de uma educação comparada à dos países ricos, utilizam para curarem seus males de convênios de saúde caríssimos para não ter que enfrentar filas nos sistems públicos de saúde, dentre outras “exclusões ao avesso” que têm determinado uma barreira na comunicação entre as classes sociais e solidificado um rancor e uma agressividade cada vez maior na convivência social. Estados de calamidade pública como o recentemente vivenciado na cidade de São Paulo são exemplos de situações limítrofes neste sentido.
Se a formação de blocos econômicos foi a maneira que países europeus, norte-americanos e asiáticos encontraram de fazerem-se fortes e concorrentes entre si e se têm estas estruturas encontrado algum valor e eficácia, é chegado o momento destes países mostrarem a relevância social destes agrupamentos e dividirem o que têm com o resto dos países que não se beneficiam das riquezas que são de todos. Da mesma forma, não adianta os países mais ricos fecharem-se em “condomínios continentais”, sem se preocuparem com o resto da saúde do mundo, que, mais cedo ou mais tarde, terão que assumir os ônus desta exclusão.
Não é regressar a nenhum discurso comunista, nem falar ransosamente do capitalismo, sob pena de se estar reduzindo-o e ignorando a complexidade da realidade que se vivência nos dias de hoje. É uma tentativa desesperada de reflexão sobre que sistema é o mais adequado para a inclusão da maior parte das pessoas do globo possível numa sociedade que se aproxime do ideal de justiça e igualdade sociais.
Realmente, assistir calado aos procedimentos destas empresas multinacionais farmacêuticas de desrespeito total com o ser humano e descaso em relação às problemáticas locais de cada país, não é o caminho mais adequado. Propor que estas multinacionais deixem de existir no contexto econômico de cada país também não é a direção mais acertada, tendo em vista os conhecimentos que já alcançaram e podem alcançar ainda em relação à saúde e às curas às doenças mais graves. Então, o que fazer? O papel de todos nós está justamente em refletir sobre que caminhos queremos construir para que nossos filhos, netos e bisnetos possam percorrer com mais tranquilidade.
Se as coisas persistirem em continuar rumando como hoje estamos testemunhando, e sem alinhar a um discurso apocalíptico, não teremos muito mais tempo e energia para dar continuidade ao projeto vida/ser-humano/meio-ambiente.