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Publicado: Segunda-feira, 30 de abril de 2012

Um rosto barbado

*Conto fictício inspirado em um fato real.

Primeiros anos do século vinte.

Deodato precisou levar uma boiada de uma invernada para outra. Era um trabalho que fazia sempre. Pelas estradas sem movimento e até pelas ruas da cidade, lá ia ele, cavalgando um belo cavalo, tocando o berrante a frente dos bois enquanto um escravo seguia-o na retaguarda.

Os bois costumavam acompanhá-lo docilmente, mas naquele dia ele precisava levar o Tomaz, um touro rebelde que sempre dava trabalho.

O nome Tomaz foi dado ao boi em “homenagem” a um amigo de seu pai que era muito encrenqueiro, que vivia dizendo que não levava desaforo para casa, que já tinha dado surras homéricas em desafetos, etc. A maior parte era exagero, mas que ele era valentão, lá isso era mesmo.

De qualquer forma o boi se chamava Tomaz e com ele ninguém contava prosa.
O pai estava meio apreensivo:

— Quem sabe é melhor não levar o Tomaz?
— Imagine Pai, eu sei lidar com ele. Garanto que ele vai muito bem.
— Veja lá o que você vai fazer. O estouro de uma boiada não é brincadeira.
— Fique tranquilo. O Tomaz e eu nos entendemos.

E lá foi ele pela estrada poeirenta naquela bela manhã de sol ardente.

Tudo estava correndo muito bem até que chegou a Sorocaba que naquele tempo era um vilarejo.

Sinhazinha Eloísa estava na sala fazendo renda e deixara aberta a grande porta da frente que dava diretamente para a rua para entrar o ar fresco da manhã e também para ver a passagem da boiada e principalmente do belo boiadeiro.

Mas, inexplicavelmente, quando passavam defronte a casa da garota o Tomaz rebelou-se, saiu do meio da boiada e avançou pela porta da casa.

Incontinente, Deodato saltou do cavalo e pulou a janela a tempo de evitar que o boi adentrasse a sala.

Sinhazinha Eloisa assustada levantou-se, tentou correr, mas derrubou a almofada, os bilros e as linhas embaraçaram seus passos e ela quase caiu.

Instintivamente Deodato segurou-a com firmeza e por uma fração de segundo seus rostos se tocaram.
No momento seguinte já Deodato estava montado tentando reunir a boiada que a essas alturas tinha se espalhado pela redondeza.

Tudo isto se passou em alguns segundos, mas aquele leve contato com a pele delicada da menina, seu perfume suave, acompanhou o garotão pelo resto da viagem sem que por um momento ele não rememorasse o episódio.

Passando a mão pela barba crescida ponderou:
— Eu devia ter me barbeado...

Por outro lado a Sinhazinha revivia com grande emoção aquele contato fortuito com o rosto barbado do rapaz. Parecia sentir ainda o contato de sua barba áspera, acelerando seu coração.

Alguns dias depois Deodato, para se desculpar pelo ocorrido, voltou à sua casa.

O pai dela, um homem jovial, aceitou as desculpas, comentou com bom humor o ocorrido e, perspicaz, percebeu o interesse velado do rapaz pela sua filha.
Por que não?

Deodato era um bom moço, filho do Coronel Juliano, de boa família, religioso, trabalhador e rico, um ótimo partido para Sinhazinha Eloísa.
Um ano depois estavam casados. 

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