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Publicado: Segunda-feira, 12 de abril de 2004

Trevas e Luz

Que privilégio poder estar vivo para participar da recuperação da cerimônia do Ofício de Trevas, no sábado último em nossa Igreja Matriz. Cinqüenta anos depois a beleza do rito, a riqueza da música, do canto gregoriano, daquela arte toda do nosso templo maior, se juntaram, novamente, ao espírito de fé, recolhimento e oração.
   
    A presença de D. Gil Antonio Moreira, Bispo Diocesano, como Oficiante, veio confirmar e oficializar o Ofício de Trevas como uma tradição retomada, deste ponto em que estamos, para sempre.
   
    Talvez para um e outro ainda seja difícil entender o significado da tradição. Pudera, estivemos tanto tempo preocupados em inventar modismos, em copiar modelos do progresso de outras gentes, destruindo edifícios, queimando arquivos, descartando obras de arte, memórias pessoais, mitos... que acabamos nos esquecendo do essencial, daquilo que nos diz respeito, que nos chama aos sentidos, aquilo que foi nosso e que permanecia adormecido, vivendo somente em nosso inconsciente coletivo.
    A Associação Cultural Vozes de Itu, no ano passado, restaurou a obra integral “Matinas de Quarta-Feira Santa” do compositor ituano Tristão Mariano da Costa (1846-1908), a fim de apresentá-la na cerimônia própria para a qual foi concebida.
   
    Neste ano houve a preocupação de trazer a tradição de volta ao seu lugar de origem, a Igreja Matriz Nossa Senhora Candelária. Logo encontrou acolhimento de Mons. Durval de Almeida, Pároco, que não mediu esforços para que o templo estivesse à altura do ato.
   
    Talvez seja válida, neste momento e espaço, uma reflexão sobre tudo isto: por que retomar uma tradição? Por que celebrar uma cerimônia praticamente desaparecida do calendário religioso? Por que envolver tanta gente, gastar tanto tempo de preparação, ensaios, adaptação litúrgica para uma cerimônia longa, que não cabe na correria de nosso dia-a-dia?
   
    Então começamos a pensar no sentido das coisas e vamos a fundo na questão da IDENTIDADE. Somos o que somos, por que emprestamos rituais, valores, formas de ser, pensar e sentir, de nossos antepassados. Muitos ritos e valores permanecem, outros se transformam muito, sem perder a riqueza. Outros vão embora.
   
    Tradição significa transmissão, levar a diante, conduzir, manter, tornar presente. Tradição não é passado, é futuro. É neste sentido que lutamos pela preservação de nossos ritos culturais. Recuperar algo que não está conosco, mas que já foi nosso é reconstruir um elo perdido, é fortalecer nossa consciência de seres, de cidadãos, saber quem somos, como somos, porque somos e para onde podemos ir.
   
    Nosso Ofício de Trevas, neste ano, foi uma experiência singular, longo não há dúvida, mas que quis trazer uma visão genuína de como ele era, de como se apresentava, sem amplificação de som, mantendo todos os elementos originais.
   
   Certamente é necessária uma adaptação aos nossos tempos, pois nada é estanque e a cultura também se transforma. Mas a transformação deve ser responsável, fazendo com que o essencial não se perca: a riqueza do ritual, tão bem conduzido pelo Altair Estrada, a magia do Latim, do canto gregoriano e a música do Tristão Mariano. Adaptar é possível, perder as características jamais.
   
    O mais importante é que conseguimos trazer de volta uma cerimônia no mínimo tocante, envolvente, emocionante, um sinal de fé.
   
   Ela só existe para uma comunidade que está buscando elementos que se perderam, que não acha mais graça no novo, se ele não tem sentido. É uma comunidade que está encontrando suas raízes. Isto está claro em todos os setores, nos meios de comunicação e o seu interesse pela memória local, nas rodas de prosa e seus ‘causos’ de sempre, no ambiente familiar e a memória dos seus, no empresariado, que acredita, investe e se sente valorizada por colaborar com um bem inestimável.
    Este momento em que vivemos é maravilhoso. Talvez há dez anos isto tudo fosse loucura. Evoluímos, adquirimos consciência!
   
   Que cada ituano se sinta feliz em poder participar deste momento privilegiado e, de outra parte, assuma sua parcela de responsabilidade para que essas coisas não se percam mais. Vamos nos engajar numa cruzada pelo belo, pela identidade, pelo bom gosto. Certamente nossos filhos, no futuro, se orgulharão muito mais de nós por não virarmos as costas às nossas tradições. A cada um basta participar, mergulhando sem reservas nesta experiência fascinante. Ela nos leva à Luz!
   
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