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Publicado: Sexta-feira, 30 de março de 2012

Tão flores como as flores

“Quanto mais a gente se envolve nessa vida tresloucada, tanto menos se apercebe de detalhes que não poderiam ficar esquecidos.

Dia desses, ao pretender sair, tive de esperar a retirada de uma camioneta estacionada em frente da garagem. Nesses poucos minutos, com uma volumosa pauta para o período da manhã, pensamento longe, olhos fitos no chão, percebi dois raminhos que brotavam no diminuto espaço entre a parede e o começo da calçada, numa fenda quase imperceptível. Prestei um pouco mais de atenção. Não eram flores propriamente, nem multicores. Predominantemente verdes. Diga-se fossem gramíneas ou algo próximo dessa espécie, pois não quero chamá-las de mato nem de matinho, receoso de ofendê-las, tão frágeis e delicadas eram. Não portentosas e fulgurantes como as rosas ou com o charme das orquídeas. Mas que eram graciosas, sem dúvida.

Nessa absorção, pus-me a pensar no esforço de vida que a natureza demonstra, a querer, essas plantinhas, emergir no mais contraindicado dos lugares. Um pouco mais à esquerda que eu movimentasse o carro, no sair, e, apesar de todo esforço, essas flores, concedamos-lhes o nome que bem merecem, - tão flores como as flores, - estariam perdidas.

Embora com algum receio de assustá-las, tentei puxar conversa, eu que também tão tímido sou. Elas contudo o eram só na aparência. Desembaraçadas, responderam minha saudação imediatamente. Eu não sei explicar direito como, mas saibam que até um sorriso deram, na mais cândida das expressões. Estava confirmado. Ninguém lhes negaria a classificação na mesma estirpe das flores e, acima de tudo, o reconhecimento de sua cativante simpatia.

Aquela sensação de querer ajudar, logo se apossou de mim e tentei alertá-las sobre o risco que corriam, sujeitas a desaparecerem de uma hora para a outra. Pelo ar de surpresa delas, tratei logo de me corrigir e de disfarçar. Percebi que nunca, jamais, em tempo algum, aqueles delicados raminhos ou florinhas – tão flores como as flores - poderiam entender tamanha aberração do ser humano, de poder ignorá-las. Como dentro delas e da sua pureza só o bem se aninha e mostram um desejo imenso de crescer e desfrutar da vida, sequer de longe imaginariam tal perigo.

Achei melhor nada lhes falar. Poderia amedrontá-las.

O mais curioso e o que mais me alegrou nessa manhã diferente foi a manifestação da curiosidade delas, das florinhas. E vieram mil perguntas.

- Toda vez que o carro sai é necessário que exale odor tão forte e desagradável, que quase nos sufoca, além do ar forte que parece querer nos arrancar do chão?

Tive de explicar que o cheiro é o resultado do combustível, sem o qual o carro não sai do lugar. E, olhem, expliquei mais, que ele não custa barato.

Não convencidas arriscaram:

- Mas será que compensa tanto estrago? Não seria melhor andar a pé? Não é para isso que servem as pernas?

Depois também me perguntaram, ou melhor, me elogiaram, porque eu tinha bom coração. Não compreendi. Elas queriam aludir ao que seria em mim desprendimento e boa vontade, ao consentir que, com tanta frequência, veículos estacionassem em frente da minha casa. Destacaram a minha paciência em às vezes até sair pelas imediações do Mercado à procura dos donos.

Fiquei um pouco chocado e não tive coragem de enganá-las. Disse que toda vez que isso acontecia, por dentro, eu me sentia mal, ficava com raiva. O que não consegui explicar melhor foi a questão seguinte, do que significava sentir-se mal por dentro.... Mudei de assunto.

Quiseram saber sobre um pessoal, munido de ferrinhos e estiletes que, de tempos a tempos, vinham limpar as frestas entre um paralelepípedo e outro.

- Fazem a limpeza das ruas, disse eu.

Difícil então foi explicar para as florinhas que elas não eram sujeira. Tratava-se de um trabalho necessário e por aí afora. Fracassei. Vi, nitidamente, que não conseguira convencê-las. Dei-me por vencido e de novo mudei de assunto.

E lá veio outra dúvida. Custou-me chegar ao interesse delas, o que desejavam realmente saber. Fui inquirido a respeito de um barulho cadenciado, ritmado em passos firmes, alguns bem próximos da calçada, delas portanto. Parecia gente brava, muito séria.

- São do Quartel, esclareci.

- Quartel? O que é isso?

- Um lugar, disse eu, onde moram homens e de algum tempo para cá também mulheres, em constante treinamento, para defesa da sociedade e para atuar em eventuais conflitos.

- O que é conflito?

Assim indagaram, quais crianças naquela faixa de idade em que se lhes desperta o desejo de tudo saber. Informei que conflito seria guerra, quando homens entre si se dizimam, se matam.

Ficaram boquiabertas.

- Matam-se, vocês? Mas gente não nasce só para viver? Ah, isso não, protestaram. Conte melhor.

Estava em dificuldade outra vez.

Mas perdera a conta de quanto tempo já fazia que me quedara ali, distraído, esquecido dos afazeres tantos. Só então notei que a camioneta já tinha ido embora. Aí, como quem acorda assustado, saí para cuidar da vida. E fui embora sem ao menos me despedir das florinhas, tão flores como as flores.

Os seres humanos são mesmo assim.

Não têm tempo.

Apressados.“

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