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Publicado: Terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Sobre cantos, anjos e magias

Conheço muito pouco das pessoas que ali estavam a se apresentar: Refiro-me a conhecê-las num sentido um tanto menos superficial do termo, uma vez que quase todos são conhecidos meus, como costumamos dizer na fala cotidiana. Dessa forma, é certo também que conseguiria apontar os sobrenomes familiares de boa parte deles. O grupo é formado por algumas dezenas de senhoras, senhores, homens e mulheres com seus dilemas, seus problemas, suas alegrias, tristezas, dores, fantasias, amores, utopias, ilusões e ideologias. Cada um traz na bagagem uma história particular, várias cicatrizes e, em um ou outro caso, talvez até feridas ainda abertas. Ali, as posições sociais são nada relevantes. Nos mágicos momentos em que se nos apresentam, uma singular metamorfose se processa: todos se despem de suas vestes reais ou de seus rotos panos e, assim, tão somente as cintilações de suas almas celestiais são importantes.
Tantas vezes cruzei com vários deles pelas ruas, em encontros sociais ou em situações do dia-a-dia; com alguns nunca troquei uma palavra sequer. Agora, estavam todos ali, perfilados, decorados em vermelho, aquecendo as cordas vocais com pensamentos nos problemas, talvez um filho ou um neto doente, ou ainda questões de ordem financeira a serem equacionadas; sabe-se lá quantos assuntos poderiam estar a ocupar seus corações e suas mentes.
Mas, nos poucos minutos que ali estivemos reunidos, por meio de misteriosa alquimia, todos esses temas mundanos foram esperar a vez, ao menos temporariamente, num plano para lá de secundário. Num leve sinal de mãos o ambiente foi preenchido por diferentes sons e em suave harmonia. Os corações ressoaram, colocando-se todos também a pulsar em uníssono. Foi um lapso de tempo para lembrar dos queridos, para pensar nos que partiram, nas crianças, nos velhos, nas sendas escolhidas, nos descaminhos, nas paixões, nas lembranças que ainda aquecem os corações. Foi um breve momento para pensar e repensar a vida.
O efeito dos sons me foi inebriante, a combinação harmônica das vozes me fez viajar suavemente pelos pensamentos. A magia musical me propiciou deixar o espaço da racionalidade e passar a uma outra dimensão, a qual, infelizmente, o ritmo frenético do cotidiano nos impede de visitar com freqüência. Havia ali algo encantador: anjos vieram ocupar temporariamente corpos humanos e as mães, os pais, e os também avós, agora eram só vozes, almas, corações e vida.
Meus olhos logo ficaram úmidos, segurei lágrimas com dificuldade, pois senti que se as deixasse livres, dificilmente as seguraria depois da fugaz exposição de canções. E eu pensei que não poderia fazer isso ali. Afinal, sendo um dos centros da festa, todos me notariam aos prantos. Que engano, que timidez a minha e que dificuldade a nossa! Gostaria que pudéssemos todos chorar em comunhão sem nenhuma vergonha; chorar nossas alegrias, chorar nossas tristezas, chorar... Somente chorar porque estamos vivos. Com velocidade imensurável, meus pensamentos passaram vistas em serenos e conhecidos semblantes: os amigos, o pai, os filhos, os amores de ontem...
Ao final da telúrica apresentação, disfarçadamente enxuguei as poucas lágrimas que não conseguira reter. Mas, apesar dos discretos movimentos das mãos, fui traído pelas emoções. Felizmente não temos propriedade nem controle sobre os nossos sentimentos. Como borboletas, eles voam aleatoriamente pelos ares ou, como alevinos, eles nadam serelepes e sem destino por águas cristalinas.
Ao final, um anjo cantor se aproximou, entregou-me um livro para que eu o assinasse, inclinou-se e, baixinho, falou ao meu ouvido, confidenciando-me que percebera minha sintonia com as vozes e minha emoção quando todos nós comungávamos com o Universo.

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