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Publicado: Domingo, 2 de maio de 2010

Serafim e Querubim

Serafim e Querubim

- É, Querubim. Esse negócio de aquecimento global é o assunto da vez lá embaixo. Agora mesmo passou uma onda de rádio de raspão na minha nuvem, falando disso de novo.

- Ainda se o problema fosse só deles, mas sobra pra gente também. O calorão bate primeiro aqui, no nosso costado. E costas de anjo, convenhamos, são bem mais sensíveis. Lá na Terra até vale a pena ter as costas quentes, mas em âmbito celeste não tem serventia nenhuma.

- Um bloqueador com fator de proteção solar de 350 seria o céu pra gente.

- Ô. E nem precisa tanto, viu. Um bom guarda-sol já ajudava. É engraçado, Serafim, a gente sofrendo aqui e aqueles terráqueos imbecis com uma ideia totalmente deturpada a nosso respeito. Quando eles dizem que estão nas nuvens, é porque atingiram o auge da felicidade. Só a gente pra saber que a nossa vida não é tão molinha assim.

- É que eles não viram o estado de nossas túnicas com fumaceira do vulcão da Islândia. Lá é fácil de resolver, eles cancelam os voos e pronto. Mas aqui não tem como escapar.

- E nada de chover pra tirar o grosso da sujeira. Essa é outra desvantagem de viver em cima, e não embaixo das nuvens. Você bem que podia usar o seu poder de influência e fazer alguma coisa pra tirar a gente dessa. Vamos lá, Serafinzão, mexa os pauzinhos...

- Realmente, nós Serafins impomos respeito e conquistamos merecida admiração. Tanto que tem muita gente que se chama Serafim lá na Terra. Já Querubim, não me lembro de ter nascido ninguém com este nome.

-   Tudo bem, mas nem por isso todos os seus xarás são anjinhos. Conheço muito Serafim traficante de droga, sequestrador, estelionatário...

-  Veja lá como fala. Na hierarquia dos anjos, você está abaixo da minha autoridade. Comporte-se.

- Que é, vai me prender? Serafim que seja delegado pra mim é novidade. Mas tudo bem, xerife, não abro mais minha boca.

-  É bom mesmo, porque para o meu gosto e pelo seu pouco tempo aqui, você anda pondo muito as asinhas de fora. Se continuar vai ter que rezar dez mil Pai-Nossos e vinte mil Ave-Marias.

-  Isso pra anjo não é castigo.

-  Mas você ainda não é um anjo no sentido pleno da palavra. Se fosse, não cometeria o pecado de falar comigo desse jeito. Fique sabendo que perto da minha ficha de bons serviços prestados você não passa de um noviço, um reles calouro nos domínios de São Pedro.

-  Dá um desconto, chefe. O senhor tá acostumado, deve ter uns quatro ou cinco séculos montando guarda no pedaço. O problema é que é cansativo ficar deitado eternamente nesse berço esplêndido de flocos. É claro que com o que é bom a gente sempre acostuma, mas às vezes dá um tédio que não tem jeito. Tirando as nossas aulas de harpa às terças e quintas, não sobra mais nada pra fazer de prático.

- Prático tem que ser o pessoal lá do vale de lágrimas. Nossa missão é outra, temos que ficar nos louvores e na vibração positiva. Entenda uma coisa, meu questionador Querubim: esse seu desejo de sentir-se útil é herança dos círculos inferiores e típico de quem ainda não tem o domínio da função. Com o tempo você se adapta e passa a tomar gosto pela adoração e pela vida contemplativa.

- Pois é, mas ainda se houvesse algum programa de integração, tipo “Conheça seu companheiro de trabalho”. Ou de descanso, no nosso caso... sei lá, mais anjos pra trocar uma ideia, entende, fazer novas amizades.

- Minha companhia não basta?

- Espera aí, não foi isso que eu quis dizer.

- Contenha a sua insubordinação, ou terei que relatar seu caso a outras instâncias.

- Calma, Serafa, calma...

- Calma coisa nenhuma. Providenciarei agora mesmo um relatório bem detalhado. Aí sim, quero ver chover  na sua nuvem.

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