Colunistas

Publicado: Quarta-feira, 12 de abril de 2006

Sem açúcar

Parei o carro no estacionamento, entrei e logo sentei à mesa da nova cafeteria. Lugar agradável, mobiliado com móveis rústicos e bonitos; uma mesa ao centro com jornais da cidade, do estado e algumas revistas coloridas. Peguei um dos periódicos locais e, para cumprir a meta estabelecida quando estacionei, pedi à garçonete uma água com gás e um café expresso. Como tenho feito já há algum tempo, para não estragar o sabor da bebida, não coloquei nem sequer adoçante. Logo depois do primeiro gole, o cigarro ficou só no pensamento; abandonei-o bem antes de ter eliminado o açúcar. Enquanto ia saboreando a bebida quente e também tragando a fumaça virtual, coloquei-me a ler as notícias do dia. Nenhuma novidade havia ali; os temas eram praticamente os mesmos: CPI, quebra de sigilo, disputas entre pré-candidatos, o primeiro astronauta brasileiro a navegar pelo espaço, a ocupação do Iraque, a AIDs na África... Para sair da mesmice, tentei até horóscopo, mas logo desisti das previsões para os escorpianos e, assim, deixei o diário de lado. Fiquei curtindo o breve momento de isolamento voluntário, saboreando o gosto típico do café amargo, de boa qualidade, e deixando a imaginação viajar livremente.
Sobrevoei as nuvens, acima do plano dos homens, numa dimensão da qual podia observar a Terra sob outro ângulo, talvez como o astronauta Pontes a tenha admirado em sua última viagem. As áreas eram verdes e havia também imensos espaços azulados. As imperfeições foram reduzidas pela ampliação da distância e a Terra explicitava toda sua incrível beleza juvenil. Eu via o mundo aparentemente sem a intervenção homem. Não consegui detectar miséria, guerras, os pedintes de rua, os meninos sem escola, as meninas prostituídas, os velhos abandonados, as crianças deixadas nas latas de lixo, os depósitos de dejetos humanos, os sem caráter, os políticos corruptos, as florestas devastadas, os rios poluídos, as almas abandonadas vagando pelos grandes centros, pessoas correndo aceleradas e sem destinos, as prisões para homens e mulheres, os loucos dentro e fora dos manicômios e os doentes abandonados pelo Estado.
A imaginação me permitia viajar sem bilhete comprado em guichês, check-in no balcão da companhia e também sem divisão em primeira e segunda classe. Então, fui navegar pelas águas do oceano. Muito distante da terra firme, singrei por mares de águas transparentes até que cheguei a uma ilha isolada, virgem ainda, também desconhecida pelo Homo sapiens. Lá construí minha cabana, dias gastei para cobri-la com folhas de palmeiras. Adotei um papagaio para companheiro de conversa nos dias ensolarados e nas noites estreladas. Sem roupa, sem horário, sem RG e sem CPF, fui construindo meu novo cotidiano.
E, depois disso, numa nova viagem engendrada pela mente, fui viver pelas montanhas. Uma cabana simples, uma lareira acesa, a imagem da janela como uma gravura e o assovio fino de um vento muito frio. Uma garrafa de vinho tinto, conversas que não objetivavam conclusões maiores, beijos, abraços, trançares de pernas, um cobertor para proteger a pele e, na parede, um relógio com ponteiros parados.
Pedi mais um café e, enquanto o aguardava, tentei o jornal novamente. Para fugir das mentiras, das vaidades, das hipocrisias, mensalões e quejandos, preferi mesmo o horóscopo, apesar do meu ceticismo com relação à sabedoria dos astros: "Assuntos financeiros em pauta hoje, mas num sentido de perigo e de cuidado. Se possível, suspenda as transações, as compras e as vendas. Dedique-se à arte de filosofar sobre a natureza humana e sobre seus valores, em permanente mutação. Perdas e ganhos ganharão novo enquadre".
Paguei a conta à linda garçonete e logo voltei de corpo e alma ao meu planeta nem verde e tampouco azulado.
Comentários