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Publicado: Quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005

Samba sincronizado

Tenho um amigo craque em compor sambas de enredo. O cara faz a letra na hora, como um repentista, usando palavras e temas que parecem ser comum em todos os carnavais. Termos e expressões como comunidade, Xangô, Zumbi, mãe África, raiou o dia, ziriguidum, navegou, avenida, alegria, passarela, deslumbrante, reis e rainhas são verdadeiros clichês, lugares comuns, em praticamente todos os sambas de enredo. Por conta disso, meu amigo mistura tudo e faz um verdadeiro samba-do-criolo-doido, mas que engana os ouvidos menos apurados de quem não tem vocação para jurado de desfile de escola-de-samba e, como eu, acha tudo muito parecido. Hoje não consigo ouvir os sambas de enredo sem achá-los engraçados, tudo porque meu amigo me mostrou que, com um punhado de palavras-chaves é possível construir uma letra absolutamente sem pé nem cabeça, mas com rimas e ritmo suficientes para levantar a arquibancada de qualquer sambódromo.

Outra coisa interessante do carnaval é a criatividade dos carnavalescos, os responsáveis por criar os temas dos desfiles. Alguns chegam a ter verdadeiros surtos de criatividade, fazendo um assunto às vezes simples e despretencioso virar uma alegoria complexa, amparada por devaneios filosóficos. Outros têm a manha de descobrir (ou inventar?) fatos históricos que surpreendem pelo inusitado. Me lembro que, numa época em que os temas das escolas-de-samba do Rio tinham que obriga­toriamente ter relação com o Brasil, o então ascendente Joãozinho Trinta conseguiu provar que, em algum período da história, o Rei Salomão teria passado por aqui somente para poder levar à avenida o enredo “As Minas do Rei Salomão”.

A receita de um enredo é simples: pegue um acontecimento real, tipo a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil, e misture ataques de piratas, lendas indígenas, marujos apaixonados e detalhes da fauna e da flora tupiniquim. Pegue alguns dos detalhes mais interessantes da mistura, como as caravelas ou os seres fantásticos da cultura dos índios, e transforme em gigantescos carros-alegóricos. Para justificar a profusão de mulheres e homens nus, transforme-os em guerreiros tupi-guaranis. E pra encerrar, escolha uma mulher bem bonita, de preferência branca e famosa, para sair de madrinha de bateria, mesmo que seu talento não seja reconhecidamente ter o samba no pé.

Para quem assiste aos desfiles das escolas-de-samba, ao vivo ou pela tevê, fica difícil distingüir uma da outra depois da terceira escola passar. Tudo fica muito parecido e confuso, até porque há um certo exagero em tentar associar fantasias estrambólicas e alegorias espalhafatosas, cheias de brilhos e penas coloridas, ao enredo baseado em fatos históricos ou campanhas institucionais ou sociais — como o desperdício de água, a poluição, os acidentes de trânsito, o uso da camisinha etc. Os carnavalescos fazem o milagre da multiplicação de idéias e com isso transformam o mais banal dos temas no que o público, sobretudo estrangeiro, chama de carnaval.

O desfile das escolas-de-samba não representa mais a espontaneidade do povo, nem a alegria das comunidades, pois se tornou um espetáculo cronometrado que como tal tem hora pra começar, hora pra acabar, nota para evolução, nota pra isso, nota pr’aquilo... Nem mesmo as mulatas, verdadeiros símbolos do carnaval, como cabrochas opulentas e flexíveis, têm espaço na avenida, hoje ocupada por modelos, manequins e/ou atrizes branquelas que se esforçam para mostrar que sabem sambar.

É claro que se trata de um show de encher os olhos, tal a grandiosidade, a beleza e a riqueza do que desfila pelos sambródromos da vida, mas tanto luxo, tanta organização e tantos detalhes acabaram por camuflar aquilo que faz do carnaval a maior festa popular do Brasil. As escolas-de-samba optaram por esse caminho, permitindo que a festa se enquadrasse dentro de regras e estatutos, mas felizmente o carnaval é mais do que uma sucessão de agremiações com suas alas organizadas, enredos mirabolantes e requebrados coreografados. A maior festa do Brasil extrapola os limites das passarelas e ganha ruas e salões esbanjando alegria do jeito que o povo gosta, com muito samba, suor e cerveja... E responsabilidade.

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