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Publicado: Quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Referendo, Estatísticas e Falácias

Caso alguém não saiba, "falácia" significa argumento enganoso, raciocínio ilusório, argumentação que parece levar a uma certa conclusão, mas que na verdade não é válida devido à falta de coerência lógica. Quase todas as vezes em que se falou de "estatísticas" na atual campanha sobre o referendo do dia 23/10/2005, o que se viu e ouviu foram argumentos falaciosos.

A Estatística (com "E" maiúsculo) é um dos principais pilares da ciência experimental ou observacional, aí incluídas a Física, a Biologia, a Química e a Sociologia. É a análise estatística dos dados coletados que permite inferir se dois fenômenos estão ou não relacionados entre sí. "Relacionados entre sí" significa que um pode ser a causa do outro ou, o que é mais freqüente, os fenômenos em questão estão ligados a um ou vários outros fenômenos que, estes sim, causam a variação simultânea dos dois fenômenos em pauta. Embora possa-se raciocinar em termos apenas qualitativos sobre muitos fenômenos presenciados, é somente quando se consegue quantificar esses fenômenos que se pode adquirir rigor e precisão no raciocínio. Esse rigor e essa precisão são frutos da análise estatística dos fenômenos devidamente quantificados, medidos.

Para se proceder a uma análise estatística com vistas a descobrir as causas de um ou mais fenômenos de interesse é necessário, antes de mais nada, delimitar-se a classe de fenômenos que poderiam estar relacionados com o fenômeno em foco. Com isto quero dizer que, por exemplo, para se verificar se a diminuição da mortalidade infantil em determinada região é devida ao uso de um novo medicamento para, digamos, "dor de barriga", não basta contar o número de mortes por mês e confrontar esse número com a quantidade do medicamento vendida nos mesmos mêses. Crianças não morrem só por "dor de barriga". No período em questão (os mêses em que se contou mortes infantís e vendas do medicamento) a região em estudo poderia ter sido agraciada com um sistema de água tratada e uma rede de esgotos que antes não existiam. Poderia ter sido também alvo de alguma campanha de educação sobre higiene, de forma que os pais aprendessem a diminuir a exposição das crianças a fatores causadores de várias doenças. Poderia ocorrer ainda uma diminuição de mortes devido ao fato de, no período em questão, o frio ou o calor terem sido mais atenuados que em outros anos. Para se concluir que o novo medicamento teve alguma influência na diminuição da mortalidade infantil é necessário, pelo menos:

1. constatar-se que nos mêses em que as vendas foram grandes, a mortalidade foi pequena e, inversamente, nos mêses em que a venda foi menor, a mortalidade foi maior (isso tem o nome técnico de correlação negativa);

2. tomar conheciomento de que não houve nenhuma campanha educativa na região naquele período;

3. verificar-se que o número de casas com água tratada e rede de esgotos não aumentou no período, para aquela região;

4. certificar-se de que as médias mensais (ou até semanais, para se incluir a possibilidade de frentes frias rápidas) de temperatura foram as mesmas de anos anteriores;

5. certificar-se de que não houve ações governamentais do tipo "postos de saúde móvel" nos bairros da região;

6. constatar-se que não foram inaugurados postos de saúde permanentes ou hospitais na região.

O objetivo de todo esse cuidado é certificar-se de que todas as possíveis melhorias das condições de saúde infantil não ocorreram. Dessa forma, se houve alguma diminuição na mortalidade infantil, essa diminuição se deve a algum fator novo na praça, a saber a venda do novo medicamento para dor de barriga.

No caso de se confrontar número de crimes com o número de armas (registradas) por cidadão num determinado país ou região, para daí tentar extrair uma relação entre as duas coisas, é necessário considerar também: o grau de educação do povo; a quantidade e qualidade do policiamento; a agilidade, eficiência e HONESTIDADE do sistema judiciário; a segurança do sistema prisional; as leis referentes a MAIORIDADE PENAL; densidade demográfica; nível de desemprego; distribuição de renda ... Na Suiça, todo cidadão que presta seviço militar, tem (pelo menos) uma arma em casa. Os níveis de criminalidade da Suiça são expressivamente menores que o da maioria dos países. No Japão, ao contrário, é proibido ao cidadão comum (que não pertence à força policial) ter armas. Os níveis de criminalidade também não são comparáveis com os do Brasil ou outros países emergentes. Mas tanto na Suiça como no Japão, o nível de escolaridade é altíssimo, o nível de desemprego é baixo, a força policial é bem equipada e bem preparada. Nos EUA a posse de armas é fartamente facultada ao cidadão comum. Na Inglaterra não. A criminalidade média nesses paíse é bem menor do que entre nós. Tanto nos EUA como na Inglaterra, quem comete um assasinato (bem comprovado judicialmente) é encarcerado INDEPENDENTEMENTE da idade. Pode ser até criança! A relação entre posse de armas de fogo e número de crimes não é, de forma alguma, uma relação simples. Ela está inserida em um contexto social e econômico que extrapola, em muito, uma simples quantificação de armas e crimes.

Uma das “estatísticas” mencionadas na mídia diz respeito a uma hipotética relação de causa e efeito entre a entrega voluntária de armas e uma diminuição das internações por ferimento com arma de fogo. O estudo (http://www.mj.gov.br/senasp/estatisticas/estat_desarmamento.htm ) aponta diminuição no percentual de internações (no RJ e SP) devidas a ferimento por arma de fogo justamente no período da entrega voluntária de armas e conclui que esta é a causa daquela. No estudo não há NENHUMA referência a qualquer outro fator que poderia causar essa diminuição de ferimentos por arma de fogo, como por exemplo, maior policiamento ostensivo, menor quantidade de fugas de presos (ou maior quantidade de recapturas, em caso de fuga), menor comercialização de bebidas alcóolicas, menor atividade do comércio (diminuindo a quantidade de dinheiro em poder de lojistas e consumidores, diminuindo assim o atrativo para a atividade dos assaltantes). Eu não sei se qualquer desses fatos ocorreram ou não, o que quero ressaltar

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