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Publicado: Quarta-feira, 10 de novembro de 2004

Quimeras mil

Uma crônica do poeta Carlos Drummond de Andrade, publicada na edição de novembro da revista Boavida, propõe recomeçar a vida limpando gavetas e jogando fora todas aquelas coisas que nos ligam a um passado que não interessa mais. O texto é tão lindo, tão sensível, que resolvi aceitar a sugestão e fui logo abrindo meu arquivo de lembranças para fazer uma faxina geral. Espalhei no chão do quarto as fotos, os bilhetes, as cartas, os cartões, os recortes de jornais, os negativos fotográficos (que nunca revelei), os desenhos e tudo mais que testemunha meu passado de jovem idealista, sonhador e apaixonado. De repente, me percebi tão envolvido pelas lembranças que não consegui separar quase nada para jogar fora, como se houvesse um imã me prendendo às recordações, inclusive as que não me trazem aquela saudade gostosa de sentir.

O passado tem forte influência no que somos hoje. Cada guardado espalhado no tapete me fazia relembrar sensações tão fortes quanto contraditórias. Uma letra de música transcrita num pedaço de papel, que na época serviu para demonstrar entusiasmo por uma relação amorosa prestes a iniciar, hoje já não significa mais nada, pois o sentimento não só não vingou como nem a amizade resistiu aos desencontros da vida. Olhando para aquele papel, agora amarelado, percebo que o tempo se encarrega de cicatrizar feridas mas não apaga sensações. É como quebrar o braço, por exemplo, e sentir o lugar da fratura, de vez em quando, anos a fio, em dias chuvosos.

A frase impressa em um telegrama dizia que “nem as divergências mais profundas abalam uma amizade sincera”. Ela foi escrita (e enviada há tempos coincidentemente por ocasião do meu aniversário) por um colega de profissão, na época, meu chefe, devido a um desentendimento profissional que nos fez “ficar de mal” por uma longa semana. Relendo e rememorando o fato, percebi que divergências profundas podem, sim, abalar uma amizade sincera, pois passados 23 anos, essa relação - pessoal e profissional - não é mais a mesma justamente por conta de outra divergência. Mesmo assim, não consegui jogar o telegrama fora, pois ele representa um momento especial que não consigo limpar da memória, como alguns outros que tanto mal fizeram ao meu coração, mas que insisto em guardá-los em meio a tantas outras quinquilharias inúteis e cheirando a mofo.

O tempo se encarrega de renovar sentimentos, mas teimamos em alimentar frustações, mágoas e ressentimentos, armazenando lembranças que não contribuem em nada para o que Drummond chama de “recomeço” - na verdade, chances que a vida insistentemente nos dá de limpar a poeira do passado e seguir em frente por novos caminhos, com outros objetivos e ótimas companhias. Aos poucos vou limpando minhas gavetas sentimentais, até porque recomeçar é uma viagem que se deve fazer com mochila vazia.

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