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Publicado: Segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Quem não tiver pecado, dê a primeira palmada

Crédito: Banco de imagens Quem não tiver pecado, dê a primeira palmada
"É preciso ouvir com maior atenção as crianças."

Em uma antiga historieta, um garotinho vai ao açougue comprar sangue de boi para sua mãe fazer chouriço (prato típico do interior de São Paulo e Minas Gerais). Por medo de se esquecer da encomenda, o pequeno vai repetindo em alta voz: “Tomara que tenha sangue!”. Durante o trajeto, passa por uma briga de rua entre dois homens e logo alguém o corrige: “Pare com isso, o certo é você dizer: ‘Tomara que se separem!’” O garotinho segue assim seu caminho, repetindo a nova frase até passar em frente a uma igreja de onde está saindo um casamento. Imediatamente, é corrigido para que passe a dizer: “Tomara que saia mais um”. Segue ele, então, repetindo a nova frase até passar por um velório de onde está saindo um enterro e, novamente corrigido, prossegue desnorteado, desviando-se cada vez mais da orientação inicial.

Lembrei-me dessa metáfora em virtude da discussão sobre a lei das palmadas. E percebi o porquê da associação quando a conjuguei com o fato de o Marketing Infantil abordar diretamente a criança como plena consumidora antes mesmo de ela se tornar uma cidadã plenamente constituída. Tal como o garotinho da história, nossas crianças estão confusas entre várias orientações opostas. Enquanto o Marketing Infantil só lhes diz “sim”, “você pode”, “você merece”, “faça parte”, os pais, diante de tantas súplicas por produtos diversos, acabam tendo que lhes dizer “não” muito mais vezes do que os pequenos podem aceitar e suportar. Importante lembrar que entre as principais causas dos diversos transtornos emocionais, uma delas é a criança ter que conviver, ao mesmo tempo, com duas versões antagônicas da mesma orientação.

Primeiro, os pais tentam ensinar limites aos filhos como condição essencial à sua educação, dizendo-lhes que devem respeitar os mais velhos. Em seguida, a criança liga a TV e se depara, por meio das mensagens comerciais, com inúmeras vozes provindas do tal mundo dos mais velhos, dizendo-lhes que o certo é consumir sem tréguas toda sorte de produtos. À mesa, ela mastiga o brócolis confiante nas orientações sobre a importância da alimentação balanceada para preservação de sua saúde. Na manhã seguinte, uma campanha dita humanitária de uma rede de lanchonetes a convoca a consumir o máximo possível de sanduiches ricos em sal, gorduras e açúcar a fim de ajudar a salvar a vida de crianças com câncer. E depois de desamparar as crianças em meio a tantas incoerências, muitos ainda reivindicam o direito de ensiná-las a agir corretamente a poder de palmadas. Quando não de pauladas, infelizmente.

Quando um coleguinha bate no outro na escola, rapidamente lhe ensinam que não se pode bater e que se ele está descontente com o outro deve aprender a expor seus motivos. Porém, quando a mesma criança esperneia no supermercado ou na loja para ganhar um brinquedo, pode-se ler nos olhos curiosos em volta a torcida para que os pais contenham logo o “chilique” com o famoso “tapa bem dado”. Nem de longe, cogitam a ideia de que, por trás daquela reação da criança, pode existir um motivo gerado pela ação dos adultos. Se, por um lado, ainda se vê a criança como um ser incapaz de ser educado sem apanhar, por outro ela é considerada adulta a ponto de conseguir conter dentro de si o desespero da frustração. Algo difícil, aliás, até para muitos adultos. A começar pelo fato delas não terem juízo crítico formado para, por exemplo, analisar um produto e concluir: “Eu não preciso disso para ser aceita e amada, só estão querendo me seduzir a comprar”.

Qual torcedor inconformado com a derrota de seu time não se revoltaria por receber um tapa em lugar de palavras que o ajudassem a se sentir, pelo menos, compreendido. E, de preferência, com um consolo até em tom infantil: “Você tem razão de estar com tanta raiva, o juiz deve ter roubado!” No entanto, quando se trata da criança, a injustiça é duplamente cruel. Primeiro, porque ela não tem condições de dominar e identificar o sentimento que a está invadindo. Segundo, porque ela foi convencida, justamente pelo mundo adulto, de que aquele produto era necessário para fazê-la feliz e condição imprescindível para ser aceita entre seus pares.

Embora o consumo excessivo não seja a única razão para adultos baterem em crianças, o Marketing Infantil tem sua parcela de contribuiçãopela produção incessante de tantas frustrações nas crianças, com o consequente agravamento do estresse familiar. E não há, portanto, como negar que, ao oferecer a opção de compra dos produtos diretamente a elas, o Marketing enfraquece a autoridade paterna. As crianças são convencidas de que podem tudo e, justamente por serem crianças, acreditam nessa autonomia falsa que lhes é conferida. E isso, muitas vezes, acaba sendo uma mão na roda – ou na cinta – para aqueles que preferem usar a força para educar as crianças, mesmo com tanta lição de casa por fazer sobre respeito aos direitos humanos.

É preciso ouvir com maior atenção as crianças, não para saber como vender produtos a elas, mas, sim, para entender o que nós estamos fazendo com sua educação.  A propósito, penso ser oportuna a ressalva: no caso de pesquisas, é importante cuidar para não se generalizar as respostas de crianças de diferentes idades e também limitar a observação ao contexto espontâneo do seu mundo infantil, agrupando-as por idade e condições de vida. Isso porque cada ano faz uma diferença significativa no desenvolvimento dos pequenos, além de ser necessário levar em conta o quanto eles estão sendo inundados por informações sobre as questões e expectativas adultas. E por fim, porque devemos lembrar que as crianças, devido à sua vulnerabilidade, tendem a fazer o máximo para agradar os adultos como forma de garantir seu bem-estar e sobrevivência.

Donald Winnicott, psicólogo e pediatra que dedicou a vida ao tratamento e estudo do comportamento infantil, observou que, frente à expectativas desmedidas do meio ambiente, um individuo pode, desde cedo, desenvolver até mesmo uma falsa personalidade para assegurar uma boa aceitação em seu meio: “O falso self se implanta como real e é isso que os observadores tendem a pensar que é a pessoa real”. Não há porque esperar que apenas uma tragédia leve uma criança a este ponto. Afinal, não podemos dimensionar o que significa hoje para elas, em termos emocionais, este chamamento insistente do marketing para abandonarem tão rápido a infância.

Seja anunciando produtos diretamente às crianças, seja convencendo-as de que precisam dele

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