Publicado: Terça-feira, 5 de junho de 2007
Que não descansem em paz
Quando li a matéria sobre a “reforma” do Mercado Municipal, ainda na polêmica sobre a autorização ou não por parte do Condephaat (órgão do governo do estado que deveria zelar pela preservação do patrimônio histórico e arquitetônico) quase achei que era só um equivoco, que ninguém, em sã consciência, pensaria em descaracterizar um projeto concebido há mais de cem anos pelo escritório de Ramos de Azevedo.
Como nem todos sabem o que isso significa, vou desenhar (com canetinhas coloridas para ficar mais fácil entender).
A cidade de Itu tem quase quatrocentos anos, isso todo mundo já descobriu graças ao belíssimo relógio verde que está marcando a contagem regressiva em frente ao mais significativo monumento barroco de São Paulo: a Igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária, cuja fachada também foi feita por Ramos de Azevedo.
Hoje, se você quiser contemplar essa fachada admirável, vai dar de cara com essa excrescência (é o termo mais suave que me ocorre) atrapalhando a observação da Igreja e de todo o conjunto que compõe o Largo da Matriz.
Uma maravilha, não é mesmo?
Dá gosto ver como sabemos valorizar a história ituana, como sabemos respeitar o trabalho dos que nos antecederam e que devem ter feito enormes esforços para construir a imagem de cidade rica e influente em todo o país que, aliás, ainda usufruímos.
Dá gosto lembrar que em menos de meio século conseguimos “modernizar” quase todo o centro: na esquina onde tínhamos a Casa Alberto e o Sobrado dos Pereira Mendes, hoje temos significativas obras pós-tudo (ou pré-fim-dos-tempos, o que dá na mesma).
Nas ruas Floriano Peixoto, Paula Souza, Andradas o casario alinhado de portas e janelas de madeira foi sendo substituído por caixas de concreto encimadas por letreiros dignos da nossa pecha de exagerados. Hoje a gente pode caminhar com bastante gosto por elas, admirando a criatividade dos engenheiros (?), a elegante decoração adicional dos papéis e sacos plásticos artisticamente espalhados pelas calçadas. Quando chove então, fica mais bonito, a correnteza do meio-fio vai carregando tudo para as bocas de lobo, um arremedo do Rio Tietê ao alcance de todos.
Mas, voltando ao Mercado e ao Ramos de Azevedo, se quisermos completar o serviço e economizar tempo e biles dos cidadãos, talvez seja oportuno já programar outras intervenções modernizantes, pois ainda restam intactos alguns prédios feitos por ele. È um bom exercício de ignorância e menosprezo para os responsáveis por mais essa barbárie perpetrada na contra mão da história.
Talvez eu devesse pedir desculpas por esse artigo azedo e cínico, mas ao lembrar da visita a Santos, que está em pleno processo de recuperação de seu patrimônio, restaurando prédios, histórias e a auto-estima dos cidadãos, só posso lastimar que sejamos obrigados a engolir mais esta sandice, desta vez escorada na “lei” que, teoricamente, deveria protegê-la.
E como quem sai aos seus não degenera, apelo para meus ancestrais, Marius Amirat Braga e seu avô Louis Amirat (por acaso o mestre-construtor que executou o projeto do Mercado Municipal), que venham puxar o pé dessa gente toda noite, que sonhem pesadelos como forma de expiar a irremediável responsabilidade que carregarão para sempre. Que assombrem suas (in) consciências eternamente.
E que não descansem, nunca, em paz.
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