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Publicado: Segunda-feira, 14 de março de 2011

Pode me chamar de Judas

Nasci no sertão da Baia em um pequeno sítio onde viviam e trabalhavam meus pais, meus irmãos e eu.

Eu queria muito conhecer a cidade grande. Trabalhar, ter um bom salário todo mês, adquirir um dia uma boa casa própria, um carro.

Meus sonhos iam longe e assim que consegui de meu pai o consentimento e um pouco de dinheiro, mandei-me para cá.

Queria trazer comigo a Rosalina, casados, é claro, mas o pai dela não deixou e ela não teve coragem de fugir comigo.

Parece que meu pai e o dela se combinaram para me dizer mesma coisa:

- Arrume sua vida primeiro, depois vocês se casam.

A cidade encantou-me com seu movimento, suas luzes, ser burburinho.

Mas, nada foi tão simples quanto eu esperava.

Sem profissão, sem documentos, sem saber como me virar, não consegui um trabalho.

Claro, ninguém aqui tinha cana para cortar, nem vaca para ordenhar, nem roça para carpir, e eu não sabia fazer nada, além disso.

O pouco dinheiro que trouxe acabou logo e eu, sem ter onde morar, acabei me tornando um morador de rua.

Vivia miseravelmente e cada vez ficava mais difícil arranjar trabalho, pois minha aparência era cada vez pior, cabeludo, sujo, maltrapilho.

Quando chegou a Páscoa, os meninos da rua fizeram um boneco, o Judas, penduraram em uma árvore para, no Sábado de Aleluia, malharem e depois queimarem.

Diziam que era um desagravo para Jesus, mas, na verdade, era uma brincadeira, uma grande folia.

O Judas vestia uma calça de brim, uma camisa xadrez e um boné com o emblema de um time de futebol.

Minha roupa estava em frangalhos, tinha tomado chuva, estava em um estado lastimável e não tive dúvida, na calada da noite, arranquei a fatiota do Judas e vesti.

Só restou no lugar um saco de serragem que formava o corpo do boneco.

Quando os meninos chegaram ficaram furiosos e me vendo com a roupa roubada, me atacaram com pauladas, chamando-me de Judas e dizendo que iam me malhar e depois queimar.

Felizmente a polícia chegou e acabou com a algazarra dos moleques.

Mas, alguém estava nas imediações com uma câmera e tirou varias fotos da ocorrência.

No dia seguinte eu saí no jornal na primeira página com uma manchete criticando a perversidade dos garotos, o abandono dos moradores de rua, etc.

Alguns dias depois a emissora de televisão local me chamou para fazer uma entrevista sobre os problemas sociais.

Me fizeram meia dúzia de perguntas idiotas, depois uma rebuscada preleção sobre a obrigação do governo, da assistência social e não sei de quem mais.

Me dispensaram e tudo continuou na mesma.

Fui famoso por um dia, mas valeu a pena porque alguém me encaminhou para um albergue onde eu tenho um lugar onde posso dormir e direito até a me lavar um pouco, de vez em quando, quando tem água na torneira.

Achei muito bom! Tenho, agora, pelo menos durante a noite, um teto e os dias pelas ruas já não são tão penosos.
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Todas as tardes, uma senhora de um grupo religioso traz um caldeirão de sopa para nós, os hospedes do albergue.

Muitas vezes esta é a minha única refeição do dia, mas tudo bem. Eu me acostumei a conviver com a fome.

Às vezes lembro com saudade das tardes na roça.

Eu chegava cansado da lida, tomava banho na bica e depois ia jantar.

Reclamava:

- Puxa mãe! Só tem feijão hoje?

- É, filho... O arroz acabou, mas eu pus uns torresmos no feijão e bastante cebola do jeito que você gosta.

Eu punha farinha por cima do feijão, e comia em silêncio, meio emburrado.

Depois ia dormir e sonhar com as maravilhas da cidade grande.

Hoje sou uma figura popular. Dizem que pertenço ao folclore local. Olhe só que chique!

Não sei bem o que é isso, mas deve ser alguma coisa muito importante.

Bem, se você encontrar por ai um cara de vinte e cinco anos aparentando sessenta, magérrimo, cabelos e barbas crescidas, sempre com a mesma calça de brim, camisa xadrez e boné do Corinthians... Olhe eu ai!

- Maluco!

Sem dúvida. Se tivesse juízo estaria lá no sertão baiano, puxando a enxada, comendo feijão com torresmo e namorando a Rosalina.

- Vagabundo!

- Com certeza, mas, por acaso você tem um trabalho pra mim?

Ah! Meu nome de batismo é Francisco, mas pode me chamar de Judas.

Enquanto isso lá no sertão a Rosalina prepara o enxoval sonhando com o namorado e a maravilhosa cidade grande.

São muito pobres, mas a mãe sempre dá um jeitinho, quando vai a cidade, de comprar um pedaço de pano para ela fazer um lençol ou um novelo de linha para uma toalhinha de crochê.

O pai é desconfiado:

- Será que o Chico não está enrolando a Rosalina? Já faz mais de dois anos que ele foi embora. Já era tempo de ter tirado férias no trabalho e ter vindo buscá-la como ficou combinado.

A mãe contemporiza:

- Pode ser que tenha tido algum contratempo. Ele sempre foi muito correto, não ia mudar agora.

- Sei, não! As vezes quando a pessoa enrica, vira a cabeça, esquece dos pobres.

A Rosalina defende:

- Ele queria me levar. Você que não deixou!

E o pai coça a cabeça pensativo:

- Será que eu fiz a coisa certa?
 

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