Colunistas

Publicado: Domingo, 27 de junho de 2010

Palavra perdida (ao meu pai)

Palavra perdida (ao meu pai)

Eu ando atrás da palavra, eu juro que ando. A que talvez esteja no dicionário que outro dia mesmo você me perguntou se deveria ter em casa, para seus versos e rimas. Lembra, num dos últimos emails que você me passou, o assunto era o dicionário. Foi quando você – bem a seu modo, sem muita cerimônia –  resolveu ficar mudo. E palavras costumam perder serventia quando se emudece.

Desde então muitas delas, além de tornarem-se inúteis, ganharam sentido diverso. Se me falavam em traqueostomia, eu entendia seresta. Se me falavam em sedação, eu entendia bravura. Se me falavam em hospital, eu entendia passarinho. Dos raros de voo e trinado. Um Uirapuru, quem sabe? Se me falavam em cateter, eu entendia realejo, num dialeto de Babel que aqueles homens e mulheres de aventais azuis e cheiro de éter nunca compreenderiam. Sabia que havia ali, num canto de boca cheia de tubos e respiradores, o verbo-senha, o pé-de-cabra de um milhão de portas, o código de que você foi guardião por 86 anos.

Essa palavra, que você não consegue mais pronunciar, eu seguirei buscando. Vou atrás do tal dicionário, quem sabe eu a encontre por lá. Gritarei sozinho, mas bem alto e por nós dois, essa palavra aos ventos todos. Sei que isso não te deixará menos mudo, mas você não estará tão surdo que não a possa escutar.

Comentários