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Publicado: Sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O tempo ruge

O tempo ruge
 
         O tempo é uma invenção dos homens, sempre preocupados em organizar e catalogar suas experiências, uma necessidade que atravessa a história da civilização desde quando o único relógio era o sol. É tão relativo que Deus nem se preocupou com ele, decerto achando que a eternidade estava de bom tamanho.
         Tão diferente dos precisos relógios suíços! Dava apenas para adivinhar se era manhã ou tarde, pela sua posição no céu, as medidas eram mais elásticas e os minutos ainda não valiam ouro. Hoje perder alguns é quase uma heresia, tempo é dinheiro, como dizem os capitalistas e não deve ser desperdiçado.
         É engraçado observar que o tempo, apesar de toda sofisticação, dos meridianos que o fatiam em horas certas, será sempre relativo, de acordo com a urgência de cada um.
         Lembro de esperar o que parecia uma eternidade pelo próximo natal, pelas férias escolares, estas duravam tanto que chegava a enjoar do dolce far niente e já torcia para voltar para a escola.
         Nas casas antigas da família relógios abundavam, de todos os tipos, pequenos, grandes, chiques e imponentes como o relógio de armário, herança de quatro gerações, o divertido cuco e os preciosos relógios de bolso, com desenhos de flores delicadas na tampa de ouro e, por fim, os práticos de pulso.
         Todos funcionavam em ritmo único, afinados com a Matriz, executando sua sinfonia a cada quarto de hora, com uma precisão de deixar inglês de queixo caído.
         O perfeito funcionamento exigia cuidado e rigor e o Avô passava em revista diária, um a um, dando corda e regulando os ponteiros para frente e para trás, afim de deixá-los em prefeita sincronia.   
         O relógio da sala de visitas era, certamente, o mais nobre deles, de passado ilustre, de estirpe francesa, elegante nas formas delgadas. A caixa de madeira escura, com enfeites no topo, como um topete bem penteado, os ponteiros com as setas apontando para os números em algarismos romanos, que se destacam do fundo branco, tudo muito sóbrio. O seu grande mistério está escondido na caixa de madeira. Eu ficava rodeando o Avô, esperando que ele me concedesse o prazer de dar corda, com a manivela que ficava pendurada, naquela época, fora do alcance das minhas mãos buliçosas.
         Depois de séculos se exibindo a cada quinze minutos, foi aposentado. Hoje mora em minha casa, mudo e triste, pois dizem que ele atrapalha o sono, gente insensível...
         Tinha também o relógio da copa, encarregado de apressar Deolinda e a Avó, não deixando perder a hora da pinga com limão e do almoço, servido impreterivelmente, ao meio-dia.
         Mas a grande diversão era o cuco de Vó Véia, que morava no alto da parede da varanda do casão, o que tornava impossível bulir com ele. Sempre o achei um relógio muito mal educado, parecia que mostrava a língua pra gente quando saia correndo pela portinha de sua casa e esgoelava a hora certa. Além de tudo falava alto, repetindo a mesma coisa, cuco, cuco, cuco. Desconfiava de sua exatidão, era um espírito de porco de marca maior, um fuinha, mesmo, e eu conferia o número de seus gritos com os dos outros relógios, certa que ele economizava alguns berros.    
         Tinha pensamentos homicidas com esse enxerido, tinha até um plano pronto e alguns cúmplices entre os irmãos mais novos, para, sorrateiramente, esganá-lo quando botasse o bico para fora.
         Claro que nunca tivemos coragem suficiente para colocá-lo em prática, nesse tempo o chinelo cantava com vontade e a gente não se metia a besta. O relógio de pulso era uma espécie de troféu, sinal que tínhamos deixado de ser apenas crianças e promovidos à categoria de jovens, com horários e responsabilidades maiores.
         O tempo urge, ou melhor, ruge, mas não me importo em gastar alguns minutos, recuperando lembranças do que ficou para trás, nas franjas da memória.
        
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