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Publicado: Quinta-feira, 9 de novembro de 2006

O Retrato

É uma gente peculiar, essa dos Leitão. E o patriarca Sylvio é a expressão máxima dessas idiossincrasias, um homem de muitas faces contraditórias que convivam em espantosa harmonia.

Pertenceu ao PRP (Partido Republicano Paulista), lutou na Revolução de 1932, gostava de mesa farta (para ele uma refeição tinha pelo menos sete pratos), de jogar cartas. Boêmio e católico fervoroso, fez parte de Irmandades e mesmo cego trabalhou incansavelmente pela construção da erma de Padre Elisário de Camargo Barros, que por muitos anos habitou o centro do Largo da Matriz.

Dizem que era pessoa afável, alegre e conversador, porém cheio de opinião, de profundos afetos e desafetos. 

E foi um desafeto insuperável que provocou o causo do retrato no banheiro. Forte coisa!

Vamos aos fatos: Sylvio Leitão tinha estreita ligação com o Presidente da Província, dr. Washington Luís Pereira de Souza, a ponto de batizar seu filho com o nome do amigo. Está certo que aqui para nós ele era conhecido como Osto, mas isso demonstra que era uma amizade sólida. Dá-se como certo em casa que o dr. Washington nunca negou um pedido de meu bisavô, era batata. Tanto que durante as visitas dele à casa da Rua das Palmas, fazia fila de gente para ver o insigne paulista.

Na família, quando tinha alguma coisa importante de última hora, alguém sempre perguntava se tinha chegado o telegrama, uma referência jocosa dos telegramas que dr. Washington enviava comunicando que viria para almoçar no dia seguinte. Contavam que era uma correria, matar perus e frangos, fazer farofas e paçocas, doces e mais doces, um verdadeiro banquete. Se um almoço comum tinha sete pratos, imagine as exigências de Sylvio Leitão para  receber um convidado de tal envergadura!

Bem, por  motivo que desconheço, provavelmente alguma desavença política, dr. Washington e Sylvio brigaram. O imponente retrato do amigo, que ocupava lugar de honra na grande sala de visitas, ladeado pelos móveis com portas de cristal e tampos de mármore branco, foi removido.

Foi literalmente expurgado para lugar que pudesse simbolizar o quanto o retratado despencou no afeto e no conceito de Sylvio Leitão: o banheiro.

O exílio deve ter sido cuidadosamente planejado, com doses de  solenidade e ironia, pois foi colocado bem acima da porta do banheiro, de frente para o belo (desculpem, mas até nisso pode existir beleza) vaso de porcelana inglesa.

Pode-se imaginar a cena que ocorreu durante décadas, várias vezes por dia, o sujeito lá em seus mais íntimos afazeres, olhando para aquele o senhor vetusto, terno alinhado, bigodes bem penteados, muda e assídua testemunha das forças da natureza!

Como o Leitão deve ter se divertido com essa sua pueril vingança, da qual dr. Washington provavelmente nem tomou conhecimento.

E como ela se perpetuou, décadas afora, atravessou gerações, me alcançou menina, a encarar aquele desconhecido que morava no banheiro e dividia comigo a leitura apressada dos gibis de tio Osto.

Nas aulas de história entendi a importância do homem do retrato. Muito depois, descobri o fino senso humor de Sylvio Leitão.

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