Colunistas

Publicado: Segunda-feira, 29 de maio de 2006

O Padre Esquecido

Inúmeras e ainda desconhecidas razões deveria ter o reconhecido historiador ituano Francisco Nardy Filho (1879/1959) para reiterar, ao longo de mais de quarenta páginas dos seis volumes da obra “A Cidade de Ytu” (Ottoni Editora, Itu/SP, 1999), sua preocupação com a preservação da importância, do pioneirismo e das realizações do padre Antonio Pacheco da Silva.

Já vai longe o tempo em que, pelas estradas poeirentas de Ytu, caminhava o padre Antonio, recolhendo para seu lazareto os morféticos que encontrava. Tanto tempo que Itu já não mais se recorda. Não há festas nem homenagens para ele no século 21. A capela que mandou construir sob a invocação do Senhor do Horto - antes anexa ao antigo lazareto - mal exibe a placa com suas iniciais. Sobre a porta lateral, uma placa luzidia homenageia o padre Bento Dias Pacheco – Ferraz de nascimento, “digno imitador” do padre Antonio, conforme já classificou Nardy. Não havia parentesco entre eles. O antigo hábito de adotar o sobrenome de um ascendente levou Bento a substituir o nome paterno Dias Ferraz pelo de seu avô, Dias Pacheco, de outra vertente.

Filho do segundo casamento do sargento-mor Antonio Pacheco da Silva e Inácia de Góes Arruda, Antonio nasceu em 1752. Além dele, nove irmãos e uma meia irmã - do primeiro casamento do pai - compunham a numerosa família. Até os 26 anos dedicou-se à lavoura na fazenda Engenho Grande, de seu pai. A atual Casa do Bandeirante, na fazenda do Rosário, foi preservada pelos descendentes do sargento-mor e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

A tradição dos filhos seguirem a vida religiosa ou militar levou Antonio a São Paulo para iniciar seus estudos eclesiásticos. Na época ainda não havia seminários, que surgiram em 1856. Praticamente não há registros na Cúria Metropolitana sobre sua ordenação. O arquivo foi constituído em 1918 e inúmeros documentos anteriores se perderam, por desleixo ou devido à ação de cupins. A Cúria Metropolitana de São Paulo conserva o Livro de Ordenações com o registro do recebimento da ordem de diácono ou presbítero do padre Antonio Pacheco da Silva.

Já ordenado, padre Pacheco foi nomeado como vigário de Araritaguaba (Porto Feliz), na época um vilarejo com pouco mais de 3 mil habitantes. Ali empregou recursos próprios, junto com o arrecadado na comunidade, para a edificação de uma nova igreja matriz, em substituição às ruínas da anterior. Nove anos depois, retornou para o sítio da família, em Itu. Celebrava na igreja do Bom Jesus, e, mesmo não sendo um bom orador, sua voz forte e pausada tornava suas pregações fáceis de entender. Ganhou o respeito da população com irrepreensíveis conduta e coerência.

Percebendo a dificuldade de seus paroquianos para a obtenção de água, Padre Antonio Pacheco providenciou sua captação de um manancial distante meia légua da cidade, utilizando grandes telhões de barro como tubos. Pagou tudo do próprio bolso. Apesar de ter deixado em testamento à Câmara de Ytu 200 mil réis para a conservação do encanamento, o descaso dos vereadores possibilitou que ele fosse obstruído e inutilizado. Em 1908, quando foram abertas valas na rua do Carmo para o serviço de esgoto, parte do encanamento ainda se encontrava lá.

Também é a ele que Itu deve o primeiro hospital de morféticos. Foi Antonio Pacheco da Silva o primeiro a promover ações em benefício dos lázaros. Os leprosos acampavam nas margens das estradas em casebres miseráveis e vagavam pelas ruas das vilas, com suas longas capas e as canecas estendidas. Imploravam a esmola que os manteria vivos, e, às vezes, ameaçavam os viajantes que se recusavam a ajudá-los. À noite iam às povoações mais próximas para comprar o necessário para sobreviverem.

Sensibilizado com o abandono em que se encontravam e preocupado com a possibilidade de contágio da lepra entre a população sadia de Itu, padre Antonio solicitou ao capitão-general-governador da capitania de São Paulo, Franca e Horta, licença para fundar – às suas expensas - um hospital para abrigar os morféticos, no que foi prontamente atendido. Em suas terras mandou construir o leprosário. As obras começaram em 1804 e foram concluídas dois anos depois. O hospital foi inaugurado em 16 de março de 1807 e era composto por barracões com cômodos separados. Os doentes chegaram em 23 de julho, trazidos por ele mesmo. Muitos foram carregados nas costas por não poderem mais andar. Para manter ocupados os ainda válidos, havia um vasto terreno para plantar.

Em 1808, padre Antonio Pacheco mandou erguer uma capela ao lado do lazareto, que dedicou ao Senhor do Horto. Acima da torre tremulava uma bandeirinha com o nome “Chácara da Piedade”. Era ali que celebrava missas todas as manhãs, antes de inspecionar a horta, a despensa e a cozinha para ver se nada faltava, visitar os doentes, dar-lhes remédios e cuidar de suas feridas. A capela atual, no bairro Padre Bento, conservou da antiga apenas o altar, cujo painel foi pintado pelo artista ituano Joaquim Januário Filho, o Quinzinho Januário.

Preocupado com a sobrevivência da instituição, mandou construir no terreno em frente, uma estalagem para os viajantes e pastos para as montarias, para assegurar os rendimentos após sua morte. A renda proveniente do aluguel para pernoite dos carreiros, tropeiros e seus animais de carga, contribuía para a manutenção dos doentes.

Padre Pacheco faleceu possivelmente em 18 de julho de 1825, aos 73 anos, sem ter contraído a doença. Foram 43 anos de sacerdócio dos quais 18 de apostolado entre os doentes. Morreu pobre, pois distribuiu em vida toda a sua fortuna aos necessitados.

Quarenta e quatro anos após seu falecimento e, por insistência da Câmara Municipal de Itu, um outro padre - Bento Dias Pacheco - deu continuidade à sua obra, após um enorme esforço pessoal para vencer sua repulsa pela doença.Após a morte do padre Antonio, o hospital ficou sob o amparo e administração da Câmara. Posteriormente, sob os cuidados da Irmandade da Misericórdia – inicialmente criada para essa finalidade. Vinte e nove anos depois foi demolido e os cinco doentes que ali se encontravam foram transferidos para o primeiro asilo-colônia do Estado de São Paulo, o Santo Ângelo. Muitos leprosos voltaram às ruas da cidade ou se instalaram nos antigos campos de Pirajibú, nos quais, mais tarde, ergueu-se o asilo-colônia do Pirapitingüy.

Comentários