Publicado: Segunda-feira, 21 de maio de 2007
O olhar cego do cotidiano
Olhando as telas de Almeida Júnior a gente percebe que ele manteve um olhar sobre seu universo muito acurado, sem nenhum vestígio daqueles preconceitos que sempre estiveram associados aos caipiras. Ao contrário, procurou registrar, para além da beleza meramente estética, a realidade que estava a sua volta.
A marca da terra que o criou está visível em todo seu trabalho. As cores, por exemplo, sempre remetem aos tons da terra, do mato, do rio, da luminosidade própria da paisagem local, de sol pleno e escaldante que transbordam em suas pinturas.
As feições guardam em comum algum traço mais forte dos rostos caboclos, a cor da pele, o formato dos olhos ou da sobrancelha lembram a face de gente que conviveu com o artista e andou por estas ruas. Nos rostos de gente comum ou bem posta, conforme a encomenda ou a vontade pessoal, Almeida Júnior deixou a marca da feição ituana.
Nesse sentido acho que seu olhar nunca cegou para os pequenos gestos do cotidiano, as agruras corriqueiras da comadre, a labuta pesada do derrubador de matas, a lida na cozinha precária, o sujeito na beira do riacho que amola o facão, pronto para continuar seu trabalho.Os personagens transpiram vida, estão quase falando, se mexendo, retomando a tarefa interrompida pela pose.
Ainda podem ser encontrados por estes rincões, nos sítios espalhados pelas redondezas, as mesmas caras, as mesmas casas, a mesma labuta, a mesma luz que estão nos quadros de Almeida Júnior.
Será que olhando pelas janelas da cidade, perscrutando a intimidade das ruas e das casas, ainda não podemos reconhecer a cozinha rústica, agora transformada, em releitura, como está na moda falar. Ou mesmo no contraste entre o interior da casa abastada do engenheiro paulistano e a nesga de jardim que se entreve pela porta. Lá estão os mesmos vermelhos das paredes de taipa, os verdes luxuriantes que escapam de touceiras aqui e ali.
São símbolos ancestrais, mas que continuam representando os valores e códigos que existem desde sempre entre nós. A essência de nossa cultura, de nosso jeito particular de ver o mundo e interagir com o outro, está cristalizada na obra de Almeida Júnior e nem as mudanças acontecidas neste século, no vestir, no falar, no pensar e conviver, enfim todas as modernidades, não foram suficientes para nos afastar da raiz que gerou a identidade cultural paulista e ituana.
O “olhar cego do cotidiano” talvez cabia bem na maneira com que nós, homens do século XXI, vemos sem enxergar, falamos sem ouvir, valorizamos o consumo rápido de todo tipo de informação, desde a leitura de um livro (cada vez mais raro de se ver) até uma posição política (não quero dizer partidária) que muda ao sabor das necessidades imediatas e não como fruto do amadurecimento e da reflexão.
O nosso olhar está cego para a cidade, não reparamos em nosso patrimônio (material e imaterial), tudo muda em velocidade vertiginosa, o casarão de duzentos anos dorme em seu esquecimento anos a fio e de repente não está mais lá, virou uma caixa de concreto sem nenhum significado além de fazer seu dono ganhar mais dinheiro. É isso o mais importante para Itu, no hoje e no futuro? Que cidade teremos em 10, 50, cem anos?
Qual será a referência das pessoas sem os ícones que as ligam à sua história, como descobrir para onde seguir se não sabemos mais de onde viemos, e como chegamos até aqui?
Olhar para Almeida Júnior, sem a cegueira cotidiana que embaça a visão, é aceitar o desafio proposto por ele há mais de um século e ter a coragem, como ele teve, de ousar ver com os olhos da alma.
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