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Publicado: Sábado, 18 de dezembro de 2010

Natal, a data máxima das compras

Crédito: Banco de imagens Natal, a data máxima das compras
Crianças praticam a inclusão naturalmente

Em algum semáforo na cidade, uma mulher buzina nervosamente a fim de tentar fazer fluir um trânsito congestionado até que, no triplo do tempo que levaria, alcança o estacionamento do shopping. Quando consegue, enfim, uma vaga, o relógio lhe mostra que o tempo que calculou para as compras de Natal está se esvaindo. Indecisa, vai de uma loja à outra e, sem chegar a uma conclusão sobre o que irá realmente agradar seus familiares e convidados, sorri diante do cartaz na vitrine: “Não corra o risco de errar. Leve seu Vale-CD em linda embalagem. Grátis, uma emocionante mensagem de Natal para quem você ama!”. 
A mulher reluta um pouco olhando mais uma vez o relógio e, pouco tempo depois, sai da loja com uma sacola repleta de
Vales-CD. Missão cumprida e a parte ‘mais complicada’ do Natal resolvida. Agregando criatividade na hora de entregar os presentes, possivelmente dirá que foi a melhor forma que encontrou de não diferenciar ninguém. À saída do shopping, mais trânsito  e a hipótese de que chegará em casa muito tarde.

Em outro lugar na cidade, uma adolescente pinta e decora, pacientemente, alguns porta retratos em madeira crua e sem acabamento,  comprados a granel em uma lojinha perto de sua casa. Em cada um deles ela pretende colocar uma foto em que aparece ao lado da pessoa        a ser presenteada. E, antes de escrever os cartões feitos também à mão, sorri intimamente imaginando o comentário que colocará em cada mensagem: uma atitude solidária, uma gafe em uma festa, um flagrante, um momento triste, uma comemoração, uma despedida, uma  formatura, a volta de uma viagem. Assunto não falta. Nem alegria, nem humor, nem amor. Quantos risos, surpresas, emoções e lembranças poderão vir à tona no momento da distribuição de tais presentes! E quantos motivos sinceros eles terão para se abraçarem e dizerem um ao outro: “Feliz Natal!”. Sem trânsito, sem perda de tempo, sem nervosismo, ela terá a satisfação de ter expressado em cada presente justamente     a diferença que cada amigo ou familiar faz em sua vida.

A senhora do shopping descrevi com base em várias queixas comuns que ouço nesta época do ano. Já a adolescente, confesso, com pesar, que tirei de minha imaginação. Para que ela exista, a mulher do shopping precisa servir-lhe de exemplo. Precisa acreditar mais nos produtos invisíveis que tem dentro de si do que nos produtos anunciados minuto a minuto prometendo nos fazerem felizes e usar seu tempo em favor da construção de laços duradouros e verdadeiros. De sua parte, a comunicação mercadológica precisa deixar as crianças literalmente em paz para entenderem e relacionarem o Natal como uma data comemorativa da paz e da confiança entre as pessoas. É incompatível com essa idéia vivermos um Natal no qual, principalmente as crianças, estão sendo convidadas a acreditar que ter é mais importante do que ser e que a infância é mera passagem para o mundo adulto.

Não é mais o calendário ou as conversas em família que lembram às crianças e adolescentes que o Natal se aproxima e sim o burburinho das lojas e o tilintar do jingle Bells pela cidade, muito antes de dezembro chegar. Estamos confundindo o sentido do Natal para as crianças quando deixamos que a comunicação mercadológica reduza, por exemplo, as mil e uma possibilidades de vir a ser de uma menina a meia dúzia de comportamentos adultos da moda a fim de transformá-la mais cedo em consumidora. Estamos confundindo o Natal para um garotinho, quando permitimos que a publicidade de brinquedos o incite a pedir um tático móvel equipado com soldados e armas pesadas similar ao do filme violento restrito a adultos. E, junto com tudo isso, estamos negando, tanto quanto o marketing, os riscos futuros da frustração contínua de tantas crianças que acreditam nos apelos dos anúncios, mas não podem possuí-los. Não é por acaso que 55% dos delitos cometidos por crianças e adolescentes recolhidos à Fundação Casa são de roubos qualificados contra somente 10% por atentado à vida, confirmando a crença deles de que serão aceitos socialmente se puderem ostentar também os produtos anunciados, mesmo que obtidos de maneira ilícita.

Sendo assim, para que Natal estamos nos preparando e que tipo de esperança estamos semeando para nossas crianças? Associar o Natal ao consumo prejudica tanto quem compra em excesso como quem não tem condição de sequer adquirir os itens básicos à sua sobrevivência. Assim, neste Natal, em lugar de comemoração, o que mais possivelmente se ouvirá nos lares das camadas menos favorecidas será: “Desculpe, filho, papai Noel não pôde trazer o que você pediu!”, fazendo com que crianças tenham que ir dormir frustradas e acreditando-se excluídas de seu meio social. Ou, então, fazendo com que pais sobrecarregados de obrigações mergulhem em dívidas a fim de evitar a tristeza dos filhos. E mesmo nos lares mais abastados, provavelmente muitas outras crianças irão dormir atulhadas de brinquedos encarregados de convencê-las que os objetos podem substituir o amor.

Sob nossos olhos, a comunicação mercadológica aborda diretamente à criança como plena consumidora antes mesmo dela se tornar uma cidadã plenamente constituída. E quando chega o Natal, é quando o marketing mais reforça a repetição dos anúncios e, ironicamente, também o tom humano de suas mensagens. Ouvi esta semana o apelo de uma apresentadora de TV convocando a sociedade a participar de uma campanha de proteção à infância com o tema “Carinho de verdade”, dizendo, entre outras falas: “Nossas crianças e adolescentes poderão crescer com mais dignidade e com a proteção a quem eles têm direito”. Que bom seria se as celebridades, que tanto se servem do carinho e admiração das crianças, aproveitassem a confiança de que desfrutam para ajudar a protegê-las do consumismo em lugar de persuadi-las tanto  a comprar os produtos que levam suas marcas famosas.

Se queremos realmente fazer valer o espírito de confraternização relacionado ao Natal, temos que desatrelá-lo das mensagens comerciais e colocá-lo onde realmente faça sentido com uma sociedade mais justa e mais fraterna. Se os anunciantes também querem expressar realmente esse espírito, devem se comprometer – e cumprir – a não mais anunciar para crianças.  Se querem realmente alavancar nossa economia, devem ajudar as crianças a crescerem livres da obesidade infantil e das doenças decorrentes dela fomentadas continuamente pelo estímulo ao consumo de alimentos não saudáveis. Devem ajudá-las a crescer livres da erotização precoce, da delinqüência, do alcoolismo, do materialismo e das depressões or

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