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Publicado: Segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Namorando? Não, só ficando...

Crédito: Gustav Klimt Namorando? Não, só ficando...
Beijo
Ficar.
Este parece ser o modelo relacional da atualidade.
Antes de qualquer julgamento tendencioso, envolvendo moral, religiosidade e até mesmo higiene, devemos tentar contextualizar este tipo de relacionamento dentro da lógica da pós-modernidade.
 
A contemporaneidade traz alguns valores que têm impactado nossas vidas nos mais variados setores: há mudanças na maneira de se vestir, de se comunicar, de se alimentar, de constituir uma carreira profissional, de criar filhos conseqüentemente, na maneira de se relacionar com o outro.
 
Estes valores, formas de pensar e agir, expandem-se e são incorporados à nossa cultura, influenciando desde as atitudes mais cotidianas até as mais complexas.
Desta forma, se estivermos atentos, perceberemos por toda a parte sinais desta nova ordem social.
 
O namoro de portão, o flerte e até mesmo aquele “amasso” um pouco mais ousado no escurinho da discoteca, foram reeditados, e aparecem hoje repaginados através da modalidade relacional do “ficar”.
 
Vejamos quais são estes novos valores relacionados à Pós-modernidade, e qual sua relação com o “ficar”:
a) Materialismo, que cultua a forma exterior em detrimento ao conteúdo: o “ficar” tem um apelo estético, que nos leva a escolher o outro por motivos relacionados à aparência;
b) Hedonismo, ou seja, a busca pelo prazer: o “ficar” possibilita prazer imediato, descompromissado, e se desejado, de alta rotatividade;
c) Consumismo, que nos estimula a consumir cada vez mais, produtos que durem cada vez menos, mantendo ativo um grande mercado de produção, venda, descarte, reciclagem. Isto finda por gerar o Culto ao descartável: descartamos tudo, desde embalagens até pessoas. O linguajar popular diz que “a fila anda”, referindo-se aos vários contatos fugidios e passageiros com um outro, que se torna uma pessoa cada vez mais impessoal e distante. O “ficar” se enquadra perfeitamente neste modelo de funcionamento do mundo contemporâneo;
d) Permissividade, que cria uma nova ética e uma nova estética relacional. Com a permissividade corre-se o risco de tomar aquilo que se torna habitual por algo normal. Afrouxam-se muitos laços morais através da permissividade, e um dos resultados possíveis é a maior permissividade nos contatos pessoais. O “ficar” se torna mais permitido e visto com desagravo em relação a moral (quando eu era adolescente, nos anos 80, uma menina que beijasse um menino na boca em uma festa, era observada... Se beijasse dois meninos na mesma festa, era chamada de “galinha”);
e) Prolongamento da adolescência. Observamos com freqüência cada vez maior a adolescência se prolongando além dos 20 anos, com estes jovens adultos se mantendo junto aos pais, dependendo deles financeiramente e retardando a decisão de constituir a própria família. Os “namoros e compromissos sérios” ainda ocorrem, mas até se consolidar uma relação desse tipo, estes jovens terão a possibilidade de “ficar”, atendendo à demanda do próprio desejo;
 
Tendo estes aspectos em mente, torna-se um pouco mais fácil a compreensão do fenômeno “ficar”. Ele enquadra-se perfeitamente em muitos aspectos acima assinalados, sendo na realidade, a decorrência relacional das mudanças sócio-culturais impostas pela contemporaneidade.
 
Não pretendo aqui, fazer uma apologia às micaretas, situações em que muitos adolescentes competem pelo título daquele que ficou com o maior número de parceiros durante uma mesma noite. E os números assustam: um adolescente de 15 anos me disse esta semana, que se acha “meio sossegado”, e que na última micareta da qual participou, ficou com apenas 10 meninas, enquanto um de seus amigos – o menos tímido ou mais mentiroso – teria ficado com 37 garotas diferentes.
 
Entretanto, não podemos fechar os olhos para o fenômeno que se apresenta. A compreensão de sua gênese, dos seus fatores determinantes, motivadores e de manutenção, nos ajuda a buscar um ponto de equilíbrio, a partir do qual poderemos viver com mais saúde e orientar nossos filhos com mais equilíbrio.
 
Sem esta compreensão, nos distanciamos muito destes jovens, e seremos encarados como coisas do passado: poeirentas antiguidades, como máquinas de escrever.
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