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Publicado: Segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Justiça e paz no Reino de Deus

Depois de refletir sobre o Reino de Deus anunciado e instaurado por Cristo, acenei a algumas das parábolas do Reino, destacando a do joio e do trigo. Entre os valores que caracterizam o Reino de Deus, às vezes também chamado de Reino dos Céus, apontei, em sintonia com os Evangelhos, o amor. Não o falso amor, “éros”, de que vem erótico em nossa língua, mas o amor “agapé”, que impulsiona quem ama ao diálogo, ao serviço e à partilha dos bens, à benevolência e ao perdão. Faltando o amor, que o Apóstolo Paulo chama de caridade — amor sobrenatural — certamente nenhuma pessoa, família, grupo e mesmo Igreja é espaço onde já chegou o Reino.

Prosseguindo na reflexão, este artigo é dedicado a dois outros importantes valores do Reino: a justiça e a paz. A justiça é virtude que leva ao respeito dos direitos e bens do outro, é o empenho na construção de um mundo em que não falte a ninguém pelo menos o necessário e o conveniente, correspondente à dignidade humana. Pertença a que povo pertencer, esteja em que classe social estiver: operários e camponeses, homens ou mulheres, classes C, D e outras mais carentes se houver.

A paz é fruto da justiça, como se lê em Isaías: “Opus justitiae pax” (Is 32, 17). A interminável violência, matança e ódio que predominam no Oriente Médio, especialmente entre israelenses e os palestinos, comprovam a verdade do conhecido texto do grande profeta do povo judeu, séculos antes da atual intifada e do brutal revide liderado por Ariel Sharon. Vale o mesmo para as intermináveis lutas tribais no centro da África e na Ásia, entre indianos e paquistaneses...

Há outros belíssimos textos do Antigo e do Novo Testamento, exaltando a justiça e a paz. Cito alguns, silenciando sobre tantos outros: “A justiça exalta as nações” (Pv, Provérbios 14, 34 e 31, 9); “O Senhor é Deus de justiça” e “Tão somente no Senhor há justiça” (Is 30, 18 e 45, 24); “O Senhor pede que pratiques a justiça” (Mq 6,8); “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Eles serão saciados” (Mt 5,6); “Deus há de julgar o mundo com justiça” (At 17, 31); “Será glorioso o serviço da justiça” (1 Cor 3,4); “Segue a justiça, a fé, o amor e a paz” (2 Tm 2, 22); “Na nova terra habita a justiça” (2 Pd 3,13) e, finalmente, no Apocalipse de São João: “Continue o justo na prática da justiça!” (22,11).

Sobre a paz, o leitor poderá encontrar pelo menos 200 textos, um mais belo que o outro. Seguem alguns: “Eu (Iaweh) estabelecerei a paz na terra” (Lv 26,6); “Haverá paz e segurança” (2 Rs 20,19); “Saberás que a paz é a tua tenda” (Jó 5,24); “A justiça e a paz se oscularam” (Sl 85,10); “Seu nome (o de Cristo) será Príncipe da Paz” (Is 9,6); “Eu vos darei a verdadeira paz” (Jr 14,13); “Amai a verdade e a paz” (Zc 8,19), “Bem-aventurados os construtores da paz, pois serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9); “Paz na terra aos homens de boa vontade!” (Lc 2,14); “Ele, Cristo, é a nossa paz!” (Ef 2,4) e “Busque a paz!” (1 Pd 3,11).

A justiça, um dos principais valores do Reino de Deus, de que falo aqui, não é somente a justiça imposta por leis humanas. É a justiça evangélica que vai muito além da meramente legal. Exemplifico: a justiça legal impõe ao empresário que pague mensalmente pelo menos 260 reais ao seu operário, à doméstica e ao agricultor, que seja devidamente registrado, tenha o seu descanso semanal, o 13o salário e férias. É pouco, para o empregador cristão que se inspire nos Evangelhos. Esta, a justiça evangélica, exige não o menor, mas o maior salário possível. Que o operário participe senão da propriedade e gestão da empresa, pelo menos de seus lucros finais, que retribua o trabalho das domésticas com generosidade que vá além do mínimo. E por aí vai.

Da justiça evangélica resultará, com certeza, uma sociedade muito mais fraterna, na qual não falte a ninguém o necessário em que predominem a lei, o lucro e a produtividade, mas o bem maior dos que oferecem o próprio trabalho à empresa. Felizmente, vão se multiplicando pelo mundo cristão as empresas comunitárias, uma economia de comunhão, uma globalização que seja solidária. São centenas e centenas, no Brasil, na América e no Mundo. Mas, lamentavelmente, ainda predominam as duras leis do mercado, mais favoráveis aos ricos que aos pobres e marginalizados da sociedade e da vida. E, pro dolor, o Brasil está entre os países em que se multiplicam as injustiças. Por isso mesmo, falta-nos aquela paz que além de ser fruto da justiça é a paz que corresponde à pregação de Cristo. A paz tão insistentemente proclamada nas encíclicas e mensagens dos Papas. A paz de que tratou, com tanta oportunidade e ênfase, a constituição pastoral do Concílio Vaticano II (1965) a “Gaudium et Spes- Alegria e Esperança”. É sonho e utopia que precisa continuar nos embalando e envolvendo.

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