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Publicado: Terça-feira, 1 de agosto de 2006

Inversão de papéis

Agnaldo, sem se preocupar com a platéia, sentou na cadeira confortável do médico e disse ao seu “paciente”:
 
- Sou o doutor Agnaldo formado pela USP. Em que posso te ajudar?
 
Após ouvir atentamente seu “paciente”, sempre tomando nota em uma ficha, o “Dr. Agnaldo” perguntou como estava a medicação e enfatizou a necessidade de continuar tomando os remédios nos horários certos para evitar recaídas. Diante da necessidade que o paciente apresentou de dormir melhor, receitou um calmante e indicou a forma como deveria ser administrado. Entregou a receita ao paciente, dizendo que poderia pegar o remédio de graça. “É só falar com a enfermeira Doralice”. Despediu-se e chamou “próximo!”.
 
A cena narrada acima ocorreu durante uma sessão de psicodrama em que pacientes portadores de transtornos mentais simularam uma consulta médica.

Naquele dia, a capacidade de interpretação do papel de um médico psiquiatra com tamanha desenvoltura, graça, criatividade e seriedade, permitiu a Agnaldo transitar entre a fantasia e a realidade, o que denota um quadro saudável. Agnaldo sabia o que estava fazendo. Viu com os olhos de um médico. “É gostoso poder ajudar os outros” completou magistralmente nos comentários finais da sessão.
 
Na década de setenta, alguns residentes de psiquiatria em São Paulo tiveram o privilégio de participar de hole-playings (jogos de papéis) dirigidos por psiquiatras que começavam a estudar e praticar o psicodrama como metodologia de ensino e tratamento psicoterápico. Jovens médicos tiveram a oportunidade de vivenciar situações como se fossem seus futuros pacientes. Além de anteverem problemas e se prepararem para atuar diante de situações difíceis, os jogos de papéis permitiam o desenvolvimento de uma sensibilidade semelhante àquela demonstrada por
Agnaldo na sessão de psicoterapia descrita acima; inverter o papel.
 
Não nascemos sabendo nos colocar no lugar do outro. Precisamos aprender isso, assim como precisamos aprender a amar, conversar e perdoar. Da mesma forma como podemos aprender a agredir e matar quando nos sentimos ameaçados, podemos aprender a recuar, nos colocarmos no lugar do outro, entender sua perspectiva do ponto de vista cognitivo e afetivo e partir para uma negociação.
 
Atualmente, tenho assistido a uma briga desmedida entre algumas pessoas que têm sua formação baseada nas humanidades como a antropologia, a sociologia, a filosofia e a psicologia e alguns médicos. Ambos se acham donos da loucura, seja demonstrando seu processo de constituição histórica, cultural e social ou taxando-a de doença e ponto final. De um lado, médicos denominando os representantes da luta antimanicomial de xiitas. De outro, humanistas pedindo o fim dos hospitais onde vivem os algozes da saúde mental. De um lado, interesses. Do outro também.
E assim a história continua, composta de inúmeros grupos e categorias profissionais que se excluem, se odeiam, se repelem...
 
Sorte é que há os psiquiatras que conseguem quebrar o rigoroso treinamento para a cegueira autoritária e os humanistas que sabem que não se transforma a sociedade em uma geração.
 
E mais sorte ainda, dos Aguinaldos, que transitam entre a loucura e a sanidade, procurando por si mesmos entre pílulas e sessões de psicoterapias.
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