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Publicado: Domingo, 31 de dezembro de 2006

Havana - A ilha dos Canadenses

Quem é que tem cara de americano, fala inglês, nasceu e mora nos Estados Unidos, mas afirma que não é nativo da terra do Tio Sam? Resposta: um americano, quer dizer, canadense, visitando Cuba. Pelo menos é assim que ele se apresenta. E a gente fica imaginando: se todos aqueles “canadenses” estivessem ao mesmo tempo em Cuba, o Canadá ficaria às moscas... Isso ocorre por uma situação peculiar. Sem menosprezar o orgulho nacional das duas grandes nações anglo-saxônicas, a verdade é que a ciência ainda não conseguiu distinguir a olho nu a diferença entre um americano e um canadense. Por isso, é cada vez mais comum um americano entrar na proibida Cuba pelas portas de seus vizinhos mexicanos e canadenses. “Eles dizem que são canadenses, e ninguém aqui vai pedir os passaportes”, resume um funcionário público cubano. Através de uma artimanha alfandegária, os cubanos demonstram afinidade com o mundo latino e seus fantásticos ritos casuísticos. É um processo simples e eficaz. Os vistos de entrada não são estampados da forma tradicional, ou seja, no passaporte. Restringem-se a um conveniente formulário que evidentemente desaparece na volta ao território americano. Resumindo: o cidadão esteve lá, sem nunca ter (oficialmente) estado. Nada mais falso que concluir que os cubanos odeiam os americanos. (E vice-versa, provavelmente). Como qualquer nativo da ilha se apressará em esclarecer, a bronca é contra o governo, jamais o povo americano. Existe, na pior das hipóteses, uma relação de amor e ódio em relação aos yankees. No que, diga-se, os cubanos nada têm de originais quanto aos outros povos do planeta... A maior prova local disso é o culto aos automóveis americanos que teimam em rodar em Cuba depois de 50 anos de vida – os aniversários dos veículos quase coincidem com o da própria revolução. Muito mais que simples questão econômica da falta de opção de transporte privado, a extensão ad infinitum dos velhos cadilacs e outros carros se explica por um claro fascínio pelos seus ícones. Qualquer cidadão local é capaz de recitar sem pestanejar o nome, data de fabricação e características de cada um dos automóveis cinquentões americanos que passa à frente, num misto de reverência e orgulho. Sim, orgulho da tecnologia cubana capaz de perpetuar estes veículos. Isto ocorre graças a indústrias de fundo de quintal que reproduzem, de forma artesanal, faróis, lanternas e qualquer outro apetrecho há muito desaparecido da indústria automotiva norte-americana. Esta mesma devoção não existe para os carros soviéticos remanescentes do comunismo. Passivo maldito bem mais recente, os automóveis marca Lada e suas variáveis móveis menos conhecidas estão fadados à morte e ao rápido esquecimento. A admiração aos Estados Unidos não se limita a carros, mas a qualquer outra referência, que pode ir da máquina fotográfica digital, a presença ostensiva de Hemingway em diversos locais de Havana, até ao endeusamento do american way of life. É como se todos os cubanos estivessem em um funeral onde é proibido falar do morto, apesar dele estar bem à frente de todos. Será um velho amor, inesquecível e mal resolvido, onde a saudade bate forte? Talvez. Ou, quem sabe, uma atração mútua e atemporal, pois apesar das inúmeras tentativas, um não consegue viver sem o outro... Americanos – ou melhor, “canadenses” – que visitam Cuba são por sua vez nostálgicos. Sonham com o dia em que poderão voltar a viajar com freqüência e sem segredos. E aí, finalmente, vão relaxar e fumar o charuto (cubano, é claro) da paz. Enquanto isso, em seus disfarces de péssima qualidade, visitam o maravilhoso território proibido e seus encantadores habitantes, seja de forma anônima ou em missões educacionais. E sinalizam, com gentilezas e dólares, que um dia retornarão para resgatar a felicidade perdida.

publicado na revista America Economia
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