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Publicado: Sábado, 4 de junho de 2011

Feira Vintage

Feira Vintage

O relógio

De hoje acho que a gente não escapa. Estamos brilhando como nunca, improvável que ao menos um desses turistas de sandália e meias ¾  não se apaixone. Meus queridos, são 208 anos com a corda toda, trabalhando 24 horas. Chega de garoa e de poeira nessa carcaça suíça. Tudo tem seu tempo, e o meu por aqui já está chegando ao fim.

O bule de prata

Acreditem ou não, já fui posto uma vez na mesa de café da manhã do Getúlio Vargas. Mas pra falar a verdade ele nem ligou pra mim. Estava cheio até o bico de café preto, fumegava convidativo, só que o baixinho de São Borja preferiu chimarrão. Eram dias difíceis, um pouco antes do tiro no peito. Anos depois fui à leilão, embrulhado numa nojenta folha de jornal, levado num porta-malas por cinco intermináveis horas. Lustrado, fui parar na cristaleira de uma quatrocentona de Sampa, moradora de um apartamento de enorme pé direito na Alameda Santos. Logo em seguida houve a briga dos herdeiros e ganhei esse amassado vitalício, ao ser arremessado na cabeça da amante do marido da finada. De lá para onde estamos foram mais uns meses, e daqui provavelmente não saio nunca mais. Quem se habilita em me levar quer um desconto muito alto por conta da minha escoriação.

O terço de cristal

Eu rezo para que todos permaneçamos juntos e para que minha antiga dona nunca passe por aqui, me reconheça e me leve de volta para aquela incômoda gaveta da penteadeira. Lá fiquei durante décadas numa escuridão terrível, ao lado de alguns cordões umbelicais secos e duas pontes móveis de dono(s) ignorado(s). Prefiro a luz do sol da praça, gente passando e me olhando, admirando meu brilho, deslizando de mão em mão – ainda que ninguém me leve. Quando me vendeu a velha estava na pior, precisava de dinheiro para comprar comida. Se já tiver morrido, o risco de ser reconhecido é zero porque só deixou filhos homens, e homem que é homem não se lembra com detalhes do terço da mãe. Embora, pelo que me recordo, o filho mais novo não parecia tão macho assim...

A câmera

Que tal um retrato para a posteridade? Vamos aproveitar que o Diógenes comprou um veludo novo pra gente, e esse azul marinho na luz do inverno vai dar um instantâneo e tanto. Torçam para que o meu obturador não engripe e que o meu rolo de filme já não esteja vencido... vamos lá, agora, ninguém se mexe, digam x... bule, vira um pouquinho a asa... isso... ô relógio, para um segundinho senão você vai sair tremido na foto.

O retrato

Detesto ser desmancha-prazeres, mas dentro de você, câmera, não deve ter filme nenhum. E ainda que houvesse, quem iria revelar? O tempo passou e você não registrou as mudanças, essa é a triste realidade. Eu ainda sou o que sou não sei como, pois quase todos os retratos da minha época já viraram farelos. Portanto, esqueça. Ao invés de tentar guardar, viva este bom momento enquanto nos derem chance. Sei que, sendo um retrato, não deveria falar assim. Estou defendendo uma tese que contraria a minha própria utilidade. Porém, inútil por inútil, quem dentre nós ainda acha que serve para alguma coisa?

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.

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