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Publicado: Segunda-feira, 19 de julho de 2004

Em defesa da vida

O amor que leva à benevolência e ao diálogo, ao perdão e ao serviço do próximo é, como vimos, o primeiro e o maior dos valores do Reino de Deus. Exclui, como é fácil perceber, o ódio e o rancor, a vingança e as discriminações, o egoísmo e outras atitudes incompatíveis com o verdadeiro amor. Era minha intenção dedicar este artigo à justiça, especialmente à justiça evangélica, que vai bem mais longe que a justiça meramente legal, outro importante valor do Reino de Deus, tema freqüente na pregação de Cristo e em seu projeto salvífico.

Mas o debate destes dias, na grande mídia falada, escrita e televisionada, a defesa da liceidade e do direito ao aborto nos casos de anencefalia, o aval concedido pelo Ministro do Superior Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, aos médicos que colaboraram com as gestantes cujo feto não tinha uma parte ou todo o cérebro, leva-me a entrar na polêmica. Não é, como pensam alguns amigos e leitores, o gosto pelo debate mas o dever de proclamar e justificar os posicionamentos em favor da dignidade da pessoa humana, em defesa dos seus direitos e a fidelidade ao Evangelho.

A vida é, antes de tudo, um dom de Deus, primeiro dos direitos humanos e, também, um dos valores que caracterizam o Reino de Deus, onde quer que tenha chegado. Nenhum outro direito humano sobrepõe-se ao direito à vida, até porque sem a vida nem há razão para falar-se em direito ao trabalho e à saúde, à educação, ao casamento, à liberdade de pensamento, ao direito de ir e vir e outros, proclamados em 1948 na Declaração dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas, a ONU, em 11 de dezembro. É direito claramente reconhecido em todas as nossas Constituições, desde a imperial, de 1824, passando pela outras seis Constituições republicanas, entre elas a do ano de 1988 em vigor.

Aceito o princípio do primado da vida, é ilegítimo e ilícito tudo que atente contra ela, de sua concepção, o aborto, até a fase terminal, a eutanásia. Hoje a pena de morte vem sendo banida das legislações e costumes das nações do Ocidente cristão e mesmo em povos não-cristãos. Tudo que direta ou indiretamente atente contra o direito à vida — aborto e estupro, seqüestros, assassinatos e guerrilhas, guerras e terrorismo — vem merecendo a condenação dos que têm o homem e a mulher como centros da obra criadora de Deus e da história.

É por essas razões, somadas à revelação divina feita a Moisés no Monte Sinai e no Sermão da Montanha por Cristo, que a Igreja, os cristãos, toda e qualquer autoridade, devem rejeitar as expressões da “cultura da morte”, posicionando-se em favor da “cultura da vida”. Todos, especialmente as autoridades constituídas, civis e religiosas, os pais que geram uma nova vida, têm o dever de rejeitar tudo que atente contra a vida do nascituro e dos já nascidos. Não se trata, portanto, de um posicionamento apenas religioso. É uma opção exigida pelo direito natural, reforçado, para nós cristãos, pela revelação divina vetero e neotestamentária.

O “Não matar”, se não é o primeiro dos mandamentos do Decálogo é, certamente, um dos mais importantes. É ordem divina fundada na lei natural, que exclui a morte particularmente de qualquer inocente. A maioria dos juristas e povos, nos dias de hoje, está optando pela prisão perpétua mesmo no caso dos maiores criminosos, como no caso dos estupradores de crianças e mulheres, seguido de seu assassinato. Os casos multiplicam-se, por exemplo na Europa, em julgamentos recentes de grandes criminosos. Sempre é possível um erro da justiça humana e a pena capital torna irreversível a vida de quem foi eletrocutado ou guilhotinado, decapitado ou fuzilado...

Mas, insistem alguns, como, pro dolor, o “Grupo das Mulheres Católicas Pelo Aborto” e outros que não foram ao fundo do problema: e no caso de uma gestação resultante de um estupro ou quando houver sério risco de vida para a mãe? E na situação em debate nestes dias, de um feto anencefálico? Acrescento eu, também: e no caso dos portadores da Síndrome de Down, ou outros graves problemas detectados pela avançada tecnologia hospitalar na fase pré-natal?

A resposta de Adolf Hitler nos anos do nazismo e de Joseph Stalin nas décadas do comunismo totalitário e ateu, foi e continuaria sendo esta: elimine-se sem nenhum escrúpulo a vida dos deficientes físicos ou mentais. Essa posição teórica e histórica levou, sem retorno, milhares e milhares de crianças, mulheres e homens, aos fornos dos crematórios da Alemanha e aos campos de concentração, os “gulaks” da Sibéria. Sempre é oportuno recordar aos partidários do aborto, nos casos lembrados acima e, também, no dos anencefálicos, esse triste e recente passado. Neste caso a posição permissiva abriria uma perigosa brecha para o aborto em outras anomalias fetais.

Atenta e sempre dócil à palavra de seu divino fundador, Cristo, a Igreja e seus Pastores, também por motivo de fé, continuará proclamando “insistentemente a Palavra oportuna e inoportunamente” (2 Tm 4,2). Estarão sempre ao lado da vida dos nascituros e dos já nascidos inocentes. Atem-se ela ao claro ensino do Mestre: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância!” (Jo 10, 10).

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