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Publicado: Segunda-feira, 19 de junho de 2006

Dom Amaury Castanho - O Fim

Parecia apenas mais uma daquelas crises de diverticulite, que ficavam cada vez mais freqüentes nos últimos anos. Era um problema antigo, para o qual Dom Amaury já tinha seu tratamento habitual. Entretanto, dessa vez a coisa era mais séria. Um exame mais detalhado detectou um tumor do tamanho de uma laranja bloqueando seu intestino.

Submetido a uma cirurgia de três horas para extirpar o câncer, restava a esperança de que o mesmo não houvesse se espalhado por outros órgãos. Infelizmente, não foi o que novos exames revelaram. O jeito foi partir para a quimioterapia, tentando a regressão do quadro. Foram dois meses de tratamento quimioterápico, que por um certo momento fizeram o câncer estacionar. Porém, o grande mal dessa doença é que ela não pára nunca. A cada dia, ficava mais difícil acreditar numa plena recuperação.

Com o agravamento do câncer, ia ficando mais evidente o estado debilitado da saúde de Dom Amaury. Ele emagreceu e ficou com o ventre muito inchado. Mal dormia de noite, levantando sofridamente várias vezes para ir ao banheiro. As febres eram constantes ao cair da tarde. Sua bronquite atacava com mais freqüência. A voz, antes firme, foi ficando enfraquecida. Os passos vagarosos, por causa da idade e da labirintite, tornaram-se mais cambaleantes ainda.

Chegou um momento em que ambos não conseguíamos nos enganar. Como se estivéssemos lendo o pensamento um do outro, finalmente abordamos a questão da morte. Emocionado, Dom Amaury me disse que sabia estar indo ao encontro de Deus. O que fazer até lá? Entregar os pontos, vencidos pela triste realidade? Jamais: “Estamos nas mãos de Deus, filho... Vamos continuar firmes até o fim!”. Nossa despedida aconteceu aos poucos, a cada encontro, a cada visita. Qualquer palavra, tarefa ou telefonema poderiam ser os últimos.

Dom Amaury cumpriu ao extremo essa orientação que me deu. Foi um teimoso e valente guerreiro, tentando retardar a morte o quanto pôde. No dia de sua cirurgia, ainda em setembro do ano passado, fui visitá-lo no hospital. Tirou de baixo do travesseiro um maço de folhas escritas à mão. Era um de seus artigos semanais para eu digitar, devidamente ditado ao seminarista que o acompanhava durante a internação. Fiquei estupefato: nem numa situação dessas ele parava de trabalhar!

A última tarefa que me deu foi distribuir o “Diário de Um Bispo Emérito” em algumas livrarias de Itu e Jundiaí. Passou-me essa incumbência quinze dias antes de falecer. Já sem poder andar, necessitando de cadeira-de-rodas e finalmente aceitando a ajuda de um enfermeiro, não deixou de conversar sobre as novidades e até mesmo fazer umas piadinhas. Dom Amaury sabia que a morte se aproximava, mas nunca deixou de viver a vida intensamente. Parecia estar fazendo de conta que tinha uma simples gripe, para não se abater e poder consolar os que o iam visitar.

Foi triste vê-lo enfrentar seu calvário pessoal. Ele que parecia ter rodinhas nos pés, que trabalhava 16 horas por dia, que era capaz de dirigir horas a fio para cumprir seus compromissos pastorais, viu-se condenado à imobilidade e ao tédio de um quarto de hospital. Consola-me saber que, nesse ambiente, ao menos teve todos os cuidados que merecia, a atenção e o carinho de todos, começando por Dom Gil Antônio Moreira.

Foi no dia 29 de maio, meu aniversário, que o vi com vida pela última vez. Acompanhei o Padre João Batista dos Santos numa visita ao hospital. No quarto estavam o Diácono transitório Ivan e o enfermeiro. Dom Amaury dormia, respirando com dificuldade. Não pude falar com ele. Ficamos três minutos ali. Depois voltei ao meu trabalho na Cúria Diocesana. Levei comigo o crachá de visitantes do hospital, que marcava a data da visita e o nome do interno. Resolvi guardá-la de lembrança – é incrível como nesses momentos de dor nos apegamos às mais simples coisas. Enquanto colava o crachá numa folha de papel, lembrei-me das palavras de Jesus: “Eu estava enfermo e tu me visitastes”.

Três dias depois, Dom Amaury faleceu. Não fui pego de surpresa e acho que ninguém foi. Mas a dor era grande do mesmo jeito. Consolei-me lembrando de que ele finalmente teve o seu descanso, já não mais sofrendo por causa da doença. E também que havia combatido o “bom combate” do jeito que sempre quis: “Até o fim!”.

Amém.

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