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Publicado: Domingo, 3 de fevereiro de 2008

Divagações inúteis no inútil da terça

Crédito: Google Imagens Divagações inúteis no inútil da terça
Qual não foi meu espanto ao constatar a surpresa nenhuma que me espreitava, insidiosa, naquela terça. Vá lá que a terça seja via de regra um dia meio sem caráter definido, insosso intervalo entre a segunda do início útil da semana e a quarta, que assinala o seu meio. Mas tão sem graça assim jamais a vi, nem a verei provavelmente.
 
Apático, abri o livro das gravuras austeras e segredos milenares, aquele temido na infância por não poder com seu peso, adivinhando os arabescos em ouro de suas capitulares. Dele sempre mantive prudente e salutar distanciamento, uma reverência talvez vinda de olhares censores que me asseguravam sova certa ao folheá-lo. Desistia dos intentos ao cenho franzido dos capelões d’El Rei, das amas cansadas do ofício e dos Torquemadas de plantão, desses que não faltam para assustar meninos em noites chuvosas.
 
Assim, respeitoso, era o meu lidar com o livro e com os demais e tantos objetos de adoração depois dele: a vitrola de feltro vermelho sobre o prato, a Rolleyflex e a máquina de escrever, além da imagem de Santo Antonio na capela da herdade – esta de visão bissexta mas marcante, a me encarar com veemência enquanto desfiava-se o rosário à hora da Ave Maria.
 
E foi olhando então o tomo de autoria incerta, senhor de todas as senhas e sendas possíveis, que me revi criança à mesa das refeições, formando figuras com a calda de pêssego que sobrara na tigela, a alma em paz e o corpo relaxado pelo banho antes da janta. Passado tanto tempo e mandados às favas os bichos papões, estava enfim autorizado a fazer do volume o que quisesse, que divagasse sem amarras sobre ele. Seria eu o Torquemada de plantão, se criancinhas houvesse para se meter medo ali nos arredores.
 
Sem intenção consciente, a bárbara fêmea à mente foi se impondo, radiante e lúbrica. Eu traria com um pé nas costas esse leão de Coliseu a bico de pena na página 15, faminto à espera dos cristãos, se soubesse ser do agrado o sacrifício aos seus olhos campesinos. Nua bárbara da infância, herança que persiste madureza afora, mulher que a bem dizer nunca existiu em carne e osso. Ainda assim há nos desenhos um não sei quê da sua íris, que decretei acastanhada porque castanhos são os olhos da maioria das musas.
 
Desse jeito sucedeu no silêncio do quarto de hóspedes, pois é hóspede afinal o que continuo sendo por mais que os anos passem, nessa casa eternamente de outros donos. A sala de jantar, o living, os outros quartos e cômodos, com seus tetos provisórios de alicerces vacilantes, em nada confortam nem abrigam como os lares de verdade, plenos de gentes e vozes. Esse meu pequeno quarto é espaço de transição, vestíbulo para o castelo onde reina o imperecível desde que o mundo é mundo. Onde é o lugar de bárbara, o anjo estranho a quem dei vida sem que viva.
 
Que minhas pálpebras verguem ao peso de seu corpo jovem, que o sono venha e me leve às histórias nunca lidas que não cabem em mil páginas que sejam. E quanto a você, livro dos muitos mistérios, fique sabendo me darei por feliz se algum dia for capaz de decifrar-lhe a orelha.
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