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Publicado: Quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Crônica de um velório

Morreu o José, já com noventa e tantos anos. Apagou-se feito chama que consome pavio. Já na sexta-feira não arredava da cama. Mal ficava em pé para distribuir as mensagens religiosas com que brindava os clientes do filho caçula, com quem morava. Três casamentos e sete herdeiros - todos machos - sim senhor!

Paranaense, mirrado e turrão, veio para a cidadezinha do interior na juventude, para dar duro. Amealhou alguma coisinha, que lhe garantiu um teto e a educação das crianças. Ah! dizia, sem estudo num dá.

Viúvo três vezes, José andava saudoso de um novo casório. Vez ou outra tocava no assunto com a nora, que olhava de esguelha e nada dizia.

No sábado piorou. Amuado num canto, feito passarinho, foi atendido pelo médico que não viu razão para tanto.

- Manda chamar o Honório, o Luís e o Alfredo. Manda vir, também, o Nelson, o Tião e o Pedro. E você, Nenê, traz os netos e o resto. O tinhoso homenzinho sabia das coisas. No dia seguinte, bateu a caçoleta.

Dezoito horas de velório. Vieram os funcionários da empresa do primogênito, homens de negócio, parentes próximos e distantes, a vizinhança curiosa, os que gostam do glamour do evento e os que não se viam há tempos. Giravam copinhos de café e chá nas mãos e circulavam nas rodas de conversa - animadas. Um pouco de piadas numa, casos escabrosos em outra, notícias do povo dos velhos tempos numa terceira, além daquela dos alegres com cara de paisagem - os que gostam de participar “da última”.

A vendedora desempregada corria de roda em roda, atrás de oportunidade. Alguns se esparramavam lá fora, em busca de brisa. Logo adiante, uma discussão teve curso por causa da separação de um casal.

- Claro que a culpa foi dela, que botou um par de chifres no marido, dizia o convidado. Nããão. Você é machista. Olha o que ele fez! Foi pra farra com os amigos e voltou três dias depois, defendia a mulher de cabelos vermelhos.  

Um oh! de satisfação se ouviu quando a garrafa de vidro brilhou à luz das velas. A cachaça rodou pelas rodas e a animação subiu.

- Vai votar pra quem? Perguntava a militante política.

- (...).

-Você não sabe de nada. Não acompanha os noticiários? Ele é roleiro, já fez um monte de falcatruas... Tá até sendo acusado de crime - mandou serrar uns par de gente...

Num canto da sala, corbeilles, buquês e ramalhetes murchavam e desprendiam um aroma adocicado. Os curiosos se achegavam ao caixão, faziam considerações sobre o aspecto do morto, uma breve oração e partiam. Nenê suava em bicas dentro do terno - vestido especialmente para a ocasião. Desabados nas cadeiras, a mulher e os filhos cochilavam madrugada adentro. No caixão coberto de flores, José quase sorria. 

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