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Publicado: Sexta-feira, 19 de maio de 2006

Coração e razão

Vera, 9 anos, é a menor dos meus três filhos. Nesse último final de semana, levei-a à Bienal Internacional do Livro, em São Paulo. Fomos no sábado e ficamos lá até domingo. O tempo passou rápido e, terminado o período de descanso, logo após o almoço, resolvi voltar para Itu. A decisão de partirmos foi acertada; nesse horário a estrada está ainda bem tranqüila e sem grandes movimentos. Em menos de uma hora já estávamos de volta.
No sábado, quando chegamos à capital, logo encostei o carro num local próximo ao prédio onde costumamos ficar hospedados. Logo em seguida, fomos retirar as bagagens do porta-malas: bola, skate, malas, caixa de jogos, tênis e mais um monte de coisas de criança. Enquanto eu tirava os pertences todos que minha filha havia levado, percebi que ela procurava algo nos bolsos da roupa. Procurou em um deles, no outro, nos bolsos traseiros e, como não encontrou nada, logo me disse: "deixa-me abrir a mala azul, porque preciso pegar uma coisa na roupa que usei ontem". Achei estranho ela querer pegar ali e não no apartamento, mas dada à insistência, concordei. Ela pegou uma bermuda rosa que usara e logo foi vasculhando os bolsos traseiros. Achou algumas cédulas enroladas uma à outra e também umas moedas.
Pegou as moedas e caminhou apressadamente uns dez metros em direção às grades de proteção do estacionamento de um supermercado vizinho. Entregou o dinheiro nas mãos de um velho senhor, barbado, maltrapilho, morador de rua, mais de sessenta anos, e que estava deitado na calçada, ao lado da mureta. Fiquei comovido pela iniciativa dela e, logo que ela retornou, perguntei-lhe porque havia dado as moedas ao velho senhor. Então, ela me disse que ele freqüentemente está deitado ali e que, quando ela passa e tem moedas nos bolsos, ela sempre entrega algumas a ele.
Em seguida, quando subíamos pelo elevador do prédio, questionei se ela sabia o que ele faria com o dinheiro. Ela então me respondeu que ele usava para comprar cachaça. Surpreso com a resposta, e para ver até onde ia o raciocínio dela, de imediato perguntei se não era prejudicial dar dinheiro para que ele gastasse com cachaça. Afirmei também que beber em excesso faz mal à saúde.
Surpreendi-me com a resposta: ela me disse que ele bebia pela falta de dinheiro para comprar comida, que comida custa muito caro e que ele acabava gastando com cachaça, pois a bebida o alimentava e é mais barata que a comida. Não sei de onde ela havia tirado essas informações, mas imediatamente lembrei-me de um conhecido meu, hoje já falecido, e que falava algo parecido. Ele era alcoólatra e, sempre que conversávamos, ele me dizia que a bebida o alimentava.
A razão apresentada pela minha filha está incorreta. O vício deve se dar por tantas outras razões. Além disso, não pode ser só de cachaça que vive o velho homem. De qualquer maneira, um dia ela vai compreender racionalmente essas questões todas sobre a miséria, o abandono, os descaminhos, as desilusões... Creio que o fundamental é que o espírito de solidariedade já ocupa um lugar no pequenino coração.
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