Confissões de um garçom
Há quarenta anos que trabalho como garçom, vinte deles só neste estabelecimento. Gosto muito da minha profissão, para ser bem sincero não me vejo fazendo outra coisa na vida. Mas, especialmente hoje, foi um dia daqueles, uma data que entra para a história, senão para a história da cidade, pelo menos para a minha história.
Quando cheguei ao Restaurante Querengué, alguém havia pichado a nova porta de madeira que colocamos ontem. Nem preciso falar do quanto senti raiva, mágoa, ódio, prostração, indignação e dor-de-barriga. Sim, amigos, quando me deparo com injustiças ou infantilidades como pichação eu tenho dor-de-barriga. Mas tudo isso passou quando limpamos a porta e quando fui ao banheiro.
Na hora em que começamos a servir o almoço chegou um cliente que entrou para o que chamo de A Lista de Clientes Excêntricos. Para começar, o cara usava umas roupas estranhas, tinha um cabelo estranho e tinha uma cara estranha, enfim, o cara era O Estranho. Hoje em dia ninguém mais usa o chapéu que o Johnny Depp usou em a Fantástica Fábrica de Chocolate, mas respeitemos.
- O que vocês servem neste prato número dois? – bastava o cliente ler o cardápio e saberia que no número dois vem bife à milanesa, arroz, feijão, farofa e purê de batata. Ainda assim expliquei a ele, que depois pediu:
- Eu quero um desse, mas sem o purê, a farofa e o bife.
Eu não questionei, apenas disse:
- Sim, senhor.
Quando levei o prato, ele pediu:
- Você pode trocar essa colher por uma que tenha cabo de madeira? Minha religião não permite que eu tenha contato manual com ferro, aço ou borracha.
Eu não questionei, apenas disse:
- Sim, senhor.
- E me traga outro prato porque preciso levar 16,5% da minha comida para minha esposa, nossa religião não permite que ela coma fora de casa e nem me deixa comer mais que 83,5% da comida que não tenha sido preparada por ela.
- Sim, senhor.
- Sim, senhor.
- Sim, senhor – a minha vingança era que eu era feliz e ele não. É impossível ser feliz com uma cara assim...
Geralmente as pessoas me chamam de “Amigo”, “Colega” ou simplesmente “Garçom”. Tem aqueles que assoviam, fazem aceno ou apenas olham com superioridade. Outros cantam a música mais famosa (que odeio) do Reginaldo Rossi. Apenas lembro do meu nome quando os fregueses mais antigos me chamam:
- Jorjão, chega aí!
Me aproximei dos dois rapazes mais-que-sorridentes.
Um deles disse: Tá vendo aquelas três mulheres na mesa perto da porta?
Eu disse: Hum-Hum...
Um deles disse: Ta vendo a morena?
Eu disse: Hum...
Um deles disse: Boa, hein?
Eu sorri desconcertado. Não posso comentar abertamente a aparência dos meus clientes.
O outro deles disse: E tá vendo aquela loira ali na mesma mesa? Eu disse: Hum-hum...
O outro deles disse: Mais-que-boa ainda, hein?
Eu disse: E vocês estão vendo aquela ruiva junto da loira e da morena?
Os dois quase babaram ao balançarem a cabeça: Hum-Hum...
Eu disse: Então, é minha irmã e se vocês comentarem qualquer coisa sobre ela vão se ver comigo!
Ser garçom é um pouco ser membro da família, sabe. No Natal tem gente que te traz presente, no seu aniversário as pessoas vêem te cumprimentar e no Dia do Garçom, bem, nessa data ninguém faz nada porque ninguém sabe quando é o Dia do Garçom, mas se soubessem, te cumprimentariam.Tem um tio meu que diz que tudo o que se faz com boa vontade, fica bom. Eu não sou o melhor, mas sei que muita gente gosta dos meus serviços. O meu tio mesmo, ele foi médico durante mais de dez anos e só ficou verdadeiramente feliz quando abriu um restaurante. E depois me chamou para trabalhar para ele. Eu tenho de confessar: eu adoro minha profissão!