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Publicado: Quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

Claves de sol

O clima era de muito sofrimento. As pessoas caminhavam, lenta e silenciosamente, em fúnebre cortejo. Eu não compreendia bem o que se lamentava, mas sabia que o evento tinha uma profunda ligação com a religiosidade dos presentes. Além dos ruídos produzidos pelos passos, ouvia-se também um coro de vozes, com baixa intensidade, articulando seqüencialmente algumas orações. O soar seco e freqüente das matracas - como refrão das preces - tornava mais densa a atmosfera de dor. Às vezes, todos paravam e cessavam as rezas. Os velhos semblantes se mostravam ainda mais sofridos quando, lá do meio do préstito, uma voz feminina entoava um triste lamento. Reiniciada a marcha, era a vez deles se manifestarem. Ao comando do mestre, iniciavam um compassado choro metálico, acompanhados pela periódica batida da percussão. Colocados estrategicamente no meio do conjunto de filas, separavam, com delicadeza, os iniciados dos demais acompanhantes.
Em outra época, a manifestação agora era cívica. Os ritmos já não apresentavam nenhum sinal de tristeza. Os compassos, marcados em firme harmonia, davam uma clara demonstração da virilidade dos que outrora choravam. Quando executavam o hino, imperava um tom de respeito à alguma autoridade onipresente.
Entre esses dois momentos e com uma periodicidade quinzenal ou mensal, o clima se mostrava mais uma vez diferente. Muitas famílias estavam na praça onde as lâmpadas - encantadas com as estrelas - brilhavam com luz mais intensa. E, de repente, lá estavam eles outra vez. Transpirando alegria, felizes como se fossem os arautos do tempo em clima de festa e anunciando a chegada da primavera. Os jovens solteiros, moças e rapazes que circulavam em sentidos opostos, paravam para ver e ouvir o brincar dos instrumentos sob a elegante regência do experiente timoneiro.
Algum tempo depois, com 15 anos de idade, como prêmio por um concurso, viajei ao exterior para assistir as Olimpíadas. No grupo, cuja média de idade estava entre 30 ou 40, rapidamente virei motivo para as inúmeras brincadeiras típicas dessas excursões. Após um mês de saudade, já afetivamente apelidado de Itatiba, ouvia conformado as gozações da turma. Diziam : "Vai ser feriado na cidade, é a primeira vez que alguém de lá viaja de avião...". Na volta da viagem, ao desembarcar após a aterrisagem, ouvi os primeiros acordes; aqueles inconfundíveis arranjos sonoros. Em meio aos abraços de familiares e amigos, consegui represar as lágrimas que foram magicamente tecidas na harmonia da música.
Hoje, a batuta do maestro Magi está nas mãos de outro companheiro dos velhos instrumentos. Eles continuam fazendo chorar a dor nas cerimônias religiosas, transmitindo cidadania nas comemorações cívicas ou brincando alegremente com a imaginação das pessoas. Quando as luzes do coreto estiverem acesas, coloque sua roupa de domingo, pegue seu par e vá passear pela praça. Girem em qualquer sentido, sob o olhar da Lua; na praça não há mais contra-mão. Não se preocupe então com as alterações cardíacas. Nas noites de retreta, o coração bate em outro compasso ao ver a banda passar tocando coisas de amor.

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