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Publicado: Segunda-feira, 19 de abril de 2010

Chovendo no molhado

Chovendo no molhado

O velho Mario já não dispunha da saúde e da disposição de outrora, afinal ninguém vive setenta e nove anos impunemente. Mesmo assim, não abria mão de seus exercícios físicos. Sempre que podia fazia suas caminhadas matutinas.

Buscar a aposentadoria no banco era um bom pretexto para o velho Mario fazer uma caminhada um pouquinho mais longa, afinal o banco ficava há quase 20 quarteirões de sua casa.

Há anos que o incansável Mario cumpria o saudável ritual de ir caminhando até o banco receber sua aposentadoria. Aquela ginástica não era nada perto do contorcionismo contábil que precisava fazer a fim de sobreviver com a miséria da aposentadoria paga pelo governo. Mario se lamentava de poucas coisas na vida, uma delas era de não ter feito uma aposentadoria privada, dessas que prometem uma velhice segura e colorida, geralmente na praia e com muitos netos loirinhos e sorridentes em volta.

Seu Mario sempre foi previdente, por isso saía de casa às 8:30, sabia que quanto antes chegasse ao banco menor seria a fila que teria de enfrentar. Muitas cabeças brancas daquela fila já se conheciam, trocavam novidades, velhas lembranças e projetos acanhados pipocavam aqui e ali. Problemas de saúde era o assunto preferido da turminha da aposentadoria: dores estranhas, dificuldade para dormir, colesterol, pressão alta, gota, osteoporose, labirintite. Tudo isso voltava à pauta nos dias de recebimento de aposentadoria.

O velho cumpriu seu itinerário e ao chegar ao banco se surpreendeu com o tamanho da fila. Passaria a sair às 7:30, pois aquilo era fila para mais de hora! O velho Mario encheu-se de paciência e tomou seu lugar na fila que não parava de crescer.

Mario estava muito elegante, tinha um porte inglês. Alto, magro sem exagero, chapéu de feltro preto e uma charmosa bengala, era a distinção em pessoa.

Naquele dia a fila estava especialmente demorada e Mario começava a sentir vontade de urinar. O banheiro do banco era longe, ficava lá dentro, teria que passar por entre muitas mesas e muitos olhares sem contar o risco de perder o lugar na fila.

Enquanto pensava como safar-se daquela potencial enrascada, a senhora que estava imediatamente atrás dele na fila puxou conversa. Ela e o seu sobrinho não eram da capital. Moraram no interior a vida toda, até que uma proposta de emprego irrecusável foi feita ao seu marido. Casada pela terceira vez, acreditava finalmente ter encontrado seu amor verdadeiro. Carlinhos era um amor de pessoa, bem mais jovem que dona Adelaide e agora com um baita emprego daqueles! Estava muito satisfeita, pois teriam condições de dar uma boa escola, e roupas, e divertimento e tudo o que requer uma boa educação ao seu sobrinho. Sua irmã caçula havia falecido e a educação do pequeno Otávio ficou sob responsabilidade de dona Adelaide.

- Olha tia, a calça dele tá toda molhada!

O pequeno Otávio sempre foi muito espontâneo justificou dona Adelaide. Mario estava inconformado. Passara-se muito tempo até que ele houvera vencido o pudor em utilizar aquelas enormes fraldas geriátricas, pensara que com elas seus problemas de incontinência estivessem resolvidos. Que nada, no primeiro xixi que precisou das ditas fraldas se viu traído cruelmente e, por vileza do destino, aquilo aconteceu bem em frente do espontâneo Otávio.

- Ih tia, olha só, tá tudo molhado.

O moleque tomou um tremendo puxão de orelhas e calou-se imediatamente. Seu Mario ficou sem ação e resolveu que aquele era a melhor atitude. Ignorar o alarme disparado pelo Otávio e agir com naturalidade. Sua calça era escura e o molhado logo sumiria. Pensou. Perder o lugar na fila para voltar até sua casa e se trocar não resolveria nada. Até chegar em casa iria desfilar com a calça toda mijada. O que não tem solução, solucionado está.

Convenceu-se de que o melhor a fazer era agir com naturalidade e fingir que nada de anormal tinha ocorrido.

- Tia, não tem banheiro aqui?

Outro puxão de orelhas.

Mario não sabia qual seria a melhor posição para ficar diante do espontâneo Otávio, se de lado, de costas ou de frente. Afinal não sabia em qual lado o estrago havia sido maior. Sentia a perna molhada e desconfiava que tinha qualquer coisa de úmida na parte de trás da calça. Resolveu ficar de frente para dona Adelaide e seu adorável sobrinho.

Naquela posição, ficara de costas para o caixa e sempre era avisado pelo garoto quando a fila andava.

- A fila andou, tio.

Aquela situação era constrangedora, pois andar de costas o tempo todo já chamava a atenção mais do que a calça mijada. O velho Mario sentia-se nu, tinha a impressão que todo mundo olhava para ele.

Dona Adelaide, também constrangida, entendera a estratégia de seu Mario e continuou conversando como se nada de anormal tivesse acontecido. Na verdade, estava compadecida. Não sentia que uma situação daquelas estivesse muito distante do seu universo. Já passara por situações embaraçosas por causa de sua labirintite, quem não se compadecia era o espontâneo Otávio:

- Da última vez que eu fiz xixi na calça a senhora me pôs de castigo, o homem faz e a senhora nem liga...

Outro puxão de orelhas.

Finalmente chegou a vez do velho Mario. Agora não tinha jeito: teve que dar as costas a dona Adelaide e Otávio para receber sua aposentadoria. À risada gostosa de Otávio seguiu-se o som de um forte tapa.

O velho sentiu-se humilhado. Não tanto pelo valor da aposentadoria, mas pela vergonha de estar todo mijado, longe de casa e sem ter como contornar a situação. Guardou o dinheiro em vários bolsos precavendo-se contra assaltos e sentiu que o estrago era maior do que imaginara. Os dois bolsos da frente estavam molhados e o de trás também!

Pensou com aflição nas vinte quadras que teria de andar. Cogitou a ideia de pegar um taxi, mas logo desistiu por que do jeito que estava iria molhar todo estofado do carro. Os olhos do velho Mario marejaram pela injustiça que a vida estava lhe impondo quando ao sair do banco, ouviu um forte trovão ao qual se seguiu uma fortíssima tromba d’água. Seu Mario sorriu aliviado. Encaminhou-se até o banco da praça mais próxima, sentou-se feliz, tirou o chapéu e deixou-se lavar. Abençoou aquela redentora chuva que o molhava todo e apagava os sinais da vergonha.

O dinheiro ficou todo molhado, mas foi a chuva mais gostosa de toda a sua vida.

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