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Publicado: Sábado, 7 de janeiro de 2012

Castelo de cartas

Castelo de cartas

 

Chegou uma hora em que não teve mais o que dizer para as paredes do castelo, pelo menos não naquele dia de 1106. Notando o demorado silêncio e temendo o tédio que lhe pudesse aborrecer, o pajem e o bobo da corte bateram à porta do quarto dela e se apresentaram, cada qual procurando agradá-la mais que o outro. Assim, entre mesuras e acrobacias tolas, mantinham o seu lugar sob a boa e frondosa sombra do reino. Se esforçavam os dois, alternando mímicas e passatempos, embora sabendo que ela os olhava sem ver. Era outro e mais nobre o remédio que daria algum alívio à sua angústia de princesa. Um cavaleiro a se matar por ela, cavalgando pântanos e sítios movediços, a se esquivar de lanças e a erguer mais alto o brasão do seu feudo a cada batalha vencida. Queria o guerreiro das cruzadas, o mais destemido e estrategista deles, que fizesse dela a causa da sua vida e a razão da sua morte. Um herói que guardasse no coração e na mente o seu nome e o seu semblante de donzela, como inspiração e ânimo para o combate.

 

Mas, pensava ela, todos os fidalgos e guerreiros que meu pai, o Rei, me permite conhecer não passam de gazelinhas a saltitarem pelos campos provençais, com guizos dourados e patinhas lustrosas, carregando entre as pernas, por baixo das armaduras, castos e inofensivos fazedores de xixi. São funcionalmente eunucos. Todos, sem exceção, ostentam uma hombridade de fachada. Papai é tão flagrantemente corno que ele próprio chega a rir com as piadas que toda corte faz de sua extensa galharia. Mamãe, logicamente, manda vir de outros reinos os escultores de chifres – já que aqui não há um que se aproveite. Súditos e nobres esquecem de suas lidas pouco interessantes em torno de coxas de frango e taças de vinho. Duelam sem motivo aparente nos burgos, jogam a dinheiro, perdem suas colheitas, praticam a maledicência, cumprem as penitências que lhes garantirão o céu e fingem dormir o sono dos justos. Mulheres fiam e bordam, lavam e varrem. Algumas pedem ao Criador que a peste venha e as leve o quanto antes, já que o sono eterno parece mais excitante que isso a que chamam de vida.

 

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