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Publicado: Terça-feira, 13 de junho de 2017

Cartas de amor direto do coração

Cartas de amor direto do coração

 Rio de Janeiro, 24 de março de 1922.
 Ao meu adorado P...
 Saudades!
Amo-te sim, amo-te com todas as forças do meu coração, mas um abismo ergueu-se entre nós e eu fui separada de ti, talvez para sempre, não é?
Não, não mereço mais o teu amor, sou tão infeliz.
Tua J...”

        Percorria as estantes da velha biblioteca da cidade de Itu, os olhos atentos em busca de um exemplar raro que surpreendesse a minha curiosidade, quando as mãos saltaram em direção a um volume generoso, de lombo atraente com desenhos artísticos. Ali estava um livro de arte, um manual de desenho artístico, recheado de técnicas e figuras esboçadas, numa sequencia de lições de desenho de encantar os olhos e a alma. Das páginas amareladas fluía o tempo e o espírito do seu primeiro dono. Busquei uma pista de quem havia possuído aquele exemplar, mas apenas um local e uma data apareceram grafados com caligrafia cursiva e elegante: Itu, março de 1918. Folheava cuidadosamente o livro, quando inesperadamente caíram algumas folhas colocadas por dentro da contra capa. Papéis franceses finos de carta manuscrita em delicada letra feminina.
         As bibliotecas são públicas, assim como seus livros. Mas, cartas guardadas, provavelmente escondidas em um livro, deveriam ser confidenciais. Tocar em algo secreto provoca, ao mesmo tempo, sensações de fascínio e medo. Mas, não pude resistir, abri as cartas e fotografei aqueles textos na esperança de encontrar uma história que o tempo havia ocultado e que talvez tivesse morrido junto com seus personagens.
         A cidade, Rio de Janeiro. A data, 1922. A história de um amor impossível envolvendo dois jovens, que em algum momento viveram uma paixão arrebatadora presente nas cartas escritas por ela, J..., ao longo do ano de 1922.
        As palavras de J... retratam tanto a esperança de reencontrar o amado quanto o desespero de saber que nunca mais se uniria a ele nesta vida. As palavras de resignação eram cobertas com juras de amor eterno.
        “Quero ser tua, viver ao teu lado, gozando dos teus carinhos, mas estou tão longe, tão longe do meu P... Beijos, muitos beijos em tua bocca, e um apertado amplexo. Da tua sempre J...”.
         “Já nestas trevas em que vive envolto o meu coração, eu ficarei sozinha no tédio cruel do meu viver amargurado!”
         “Querido, estou um pouco adoentada, devido a uma estravagância que fiz, tentei me suicidar para ver se assim deicharei de sofrer. Oh, como é triste lembrar um tempo que se passou cheio de perenes venturas, hoje nada mais me resta d’elle... Amo-te, amo-te muito!

       Muito além do que revelam as cartas, é possível imaginar os amantes vivendo a intensidade da paixão no fulgor dos vinte e poucos anos. Ela, carioca e livre para viver o romance de sua vida, ele, um paulista do interior comprometido com outra mulher e morando distante da amada. Para alimentar a paixão interrompida só mesmo as cartas trocadas entre eles, das quais somente se conhecem as que J... escreveu. Ele, P..., a razão do amor infinito de J..., teria seguido sua vida como um mestre das artes plásticas, encantando seus alunos e seu público com suas lições e obras, como sugerem as cartas encontradas. Guardou no segredo do seu coração o amor proibido, chorando a ausência daquela que tanto o amou. O sentimento de um artista deve ser mais profundo que o nosso e, portanto, mais doloroso o sofrimento de um amor impossível.
       Foram-se os amantes, ficaram as cartas. E um segredo para sempre, pois a identidade dos apaixonados jamais foi revelada.
       Noventa anos depois, quando apenas cinzas restam daqueles corpos jovens e ardentes, a história de amor é revivida, sem confidentes nem testemunhas. Somente eu e você leitor, para apreciar a ventura, sofrer com a delicadeza do sentimento de J... e, enfim, homenagear o amor que transforma a vida das pessoas muito além da morte.
       “Para você continuarei a ser a mesma; te amando com loucura e sinceridade eternas! Sim, juramos amor eterno e cumpriremos!”
        Na quadra sombreada e silenciosa do cemitério de Itu, cenário perfeito para uma pintura, um sepulcro e uma lápide:
                                                                                    Lettere d’amore direttamente dal tuo cuore
                                                                                    ci tengono così vicini mentre siamo separati
                                                                                    non sono solo nella notte
                                                                                    nel momento in cui posso avere
                                                                                    tutto l’amore che iscrivi.

 

 

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