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Publicado: Sexta-feira, 3 de março de 2006

Calcanhotto Overdose

Uma das músicas que mais gosto da Adriana Calcanhotto é “Vambora”. Não apenas pelo ritmo, nem só pela letra, mas pela força representativa da cantora dessa música. Calma, vou explicar: para mim, Adriana Calcanhotto é uma grande cantora porque escreve, canta e interpreta músicas que falam da fraqueza e da pequenez do ser humano, sem apelar nem fantasiar como outros.

Nessa “Vambora” (que creio ter sido tema de algum personagem de novela da Rede Globo), a fraqueza que percebo é a capacidade que temos de nos iludir, a ilusão que aparece quando esperamos demais dos outros, do mundo, de Deus e não fazemos a nossa parte. Por isso a música começa exigindo “Entre por esta porta agora e diga que me adora. Você tem meia hora pra mudar a minha vida”. Seja um grande amor, um emprego ou uma viagem de fim de ano: nos decepcionamos tanto com a vida porque criamos castelos, ilusões de areia que o vento destrói rindo da nossa cara. E com certa razão.

Outra que tem temática parecida é “E o mundo não se acabou”, também gravada por Carmen Miranda e Ney Matogrosso. Essa música, menos melancólica e mais cômica que a primeira conta a história de alguém que acreditou numa dessas várias teorias do fim do mundo (“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, por causa disso minha gente lá em casa começou a rezar (...) Acreditei nessa conversa mole e fui tratando de me despedir, sem demora fui tratando de aproveitar). Atire a primeira caixinha de CD quem nunca se deixou enganar por teorias bobas criadas no fundo de uma garagem ou numa mente conspiratória. Como Calcanhotto canta na música, também nos arrependemos de crer em tanta coisa sem sentido. Mais uma vez nos iludimos.

Mas a fraqueza (ou estado enfraquecedor) que mais admiro nas canções dela é a solidão. Não é uma solidão Zezé e Luciano do tipo “você foi embora e me deixou chorando”, mas “você foi embora e me sinto culpado”. Nesta temática específica, a melhor de todas as canções (para mim) é “Devolva-me”, e essa eu tenho certeza que foi tema de novela (não que isso seja uma vantagem ou desvantagem, é que fica mais fácil identificar, já que o brasileiro adora uma novelinha). Essa raiva de si e da situação que a solidão causa é fácil perceber no começo da música: “Rasgue as minhas cartas e não me procure mais, assim será melhor meu bem. O retrato que eu te dei, se ainda tem não sei, mas se tiver, devolva-me”. Mais uma vez ela canta a nossa fraqueza de cada dia.

Adriana Calcanhotto não tem o direito de ser uma má cantora. Não mesmo. Com o curriculum dela e com a qualidade de suas músicas, ela não tem o direito de gravar um CD ou fazer um show ruim. Eu tenho esse direito, afinal eu mal peguei a época em que Tom Jobim estava vivo e cantante (ela teve aula de música com ele, além de aprender com João Donato). Eu posso fazer um show ruim, cantar “...vai ter barulho, vai ter confusão porque o mundo não se acabou...” o mais desafinado que eu puder. No banheiro, no carro ou na rua eu posso cantar desafinado. Mas não ela. Eu, se eu quiser, posso gravar um CD no quintal da minha casa com alguns amigos com músicas toscas, sem sentido e sem objetivo. Mas ela não, ela precisa continuar sendo a melhor cantora de MPB do Brasil. Se não for assim, overdose do que eu terei?

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