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Publicado: Quinta-feira, 21 de julho de 2016

Cada "bravo!" em seu lugar

Cada "bravo!" em seu lugar

Sala São Paulo. Perto do final do primeiro ato, na pequena pausa de um quarteto agradável, um homem diz: Bravo!

A espontaneidade dele me diverte.

Mas há um silêncio reprovador na plateia. Carrancudos o fitam. Envergonhado, ele desliza na poltrona.

Sei que concertos têm sua etiqueta peculiar, que ordena até o modo como as emoções devem ser expressadas.

O espetáculo continua. Passo os olhos pela plateia e percebo que poucas pessoas estão entregues ao sentimento que a música, quando toca a alma, proporciona.

Pausa para o intervalo.

Ao meu lado, um senhor reclamava com sua mulher dos pigarros na plateia, absurdo, absurdo!

Aquela cacofonia que reverbera, nos intervalos, em todos ao mesmo tempo e cessa por igual –sem maestro- é engraçada. Mas absurda?

Na volta para o segundo ato, me causa constrangimento a sala metade vazia e, ao final ver as pessoas sairem correndo, sem aplaudir os músicos, para não pegar a fila no estacionamento.

Mais estranho do que um bravo homem deslocado...

Quem foi mesmo que criou essas leis de etiqueta? Que valores elas carregam? Achar que elas tem a ver com educação é um engano. Educação tem uma espontaneidade amorosa. Educaçao é considerar.

A palavra considerar traz o prefixo con, que significa junto em latim, mais sideris, ou seja, estrelas. Considerar é, pois, desejar trazer, ou juntar, as estrelas à Terra. É acessar algo maior do que nós, que nos inspira e que nao esta expresso em regras arbitrarias.

Eu cedo o meu lugar para uma pessoa mais velha sentar.

Porque gosto, não por obrigação.

Eu agradeço ao garçom olhando nos olhos porque eu quero que ele se sinta visto, não por obrigação.

Nada disso é etiqueta.

Etiquetas são, em sua maioria, impostas por outros; não são escolhas suas. Não atingem as estrelas…

Educação tem de reverberar em bem estar. Não só o seu.

Senão, não é educação.

São rotulinhos impostos que não trazem benefício algum, tampouco alegria.

Na volta do concerto, dentro do carro, conversamos sobre o tal "incidente do bravo".

Cada um viu à sua maneira.

Mas todos concordaram que certas "etiquetas" são totalmente desnecessárias.

-Mas quais?

-Quem gera as regras que servem para nos proteger, e do que mesmo?

Enquanto a palavra proteção reverberava em nosso carro blindado, eu observava mendigos no entorno da Sala São Paulo.

Estava frio, muito frio. Fiquei aliviada de terem, ao menos, um cobertor – disfarça o meu desconforto por nada fazer.

Mendigos ficam visíveis no frio. Chegam à nossa visão apenas para aplacar nossas (in)consciências.

Mas, logo mais, no verão, a gente viaja pra praia e esquece deles. Voltam a ser invisíveis.

Remexo na minha caixa mental à procura das adequadas etiquetas para esta situação e não as encontro - elas não existem! Não dará para fechar essa caixa, etiquetá-la e só tirá-la do porão no próximo ano.

Fico me imaginando naquele lugar sem saída, olhando os carros desfilarem pela São João. O que eu faria no lugar deles? O que você faria?

Lembro desde muito pequena do sentimento de vergonha que me acometia, em cenas parecidas. Muita vergonha.

Uma vez, em uma viagem, uma moradora de rua veio ao nosso encontro pedir um dinheiro.

Ficou parada, invisível.

As pessoas se afastavam , tirando o corpo, literalmente.

Meu filho, que na época deveria ter uns 14 anos, me pediu dinheiro para dar à ela. Ela pedia apenas uma refeição.

Fomos andando até uma delicatessen, onde compraríamos lanchinhos da noite…

Ela caminhando atrás, indo para o mesmo lugar.

Ela e o meu filho conversando.

Chegando lá, ela comprou o jantar que havia pedido, e quis devolver o restante do dinheiro para ele.

Me aproximei e disse à ela que não era necessário.

Ela me olhou, do alto de sua enorme dignidade, e disse: “obrigada, mas era só para esse momento que estou com fome.”

Insistimos (para amenizar a nossa miséria humana de tamanha desigualdade) que ela poderia ter fome pela manhã, que estava frio.

Ela disse que não teria fome, mas, porque era generosa, aceitou.

Voltamos para o nosso confortável hotel e ela ficou na rua.

Nada de “bravo!” - apenas o silêncio… E logo saímos do sufoco e pudemos “tossir/respirar aliviados”; ufa!

Somos espectadores. E com isso perdemos o nosso poder pessoal e, pior, na escassez dessa mobilidade libertadora, desempoderamos os nossos semelhantes.

E, agora, de novo, dentro do carro blindado, olhando esses pobres na rua, eu me escondo na minha imobilidade.

A vergonha era mais nobre.

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