Colunistas

Publicado: Sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Bruma fugaz

Madrugada insone. Chove torrencialmente lá fora e o calor que insistia teimoso vai cedendo espaço à fresca brisa. Caminho nú pela casa, percorrendo os espaços como se fossem labirintos. Encerro a caminhada estacionando pela sala. Tempestade, clarões, colisões de nuvens e relâmpagos que fazem tremer todos os vidros. Hipnotizado, observo atentamente a catarse da natureza. O barulho da água nos choques com o solo só é interrompido, algumas vezes, pelas ruidosas trovoadas. Água, muita água e só água. Parece-me que cai todo o líquido do mundo; rompeu a aorta da atmosfera. Mantenho a sala toda escura e observo, agora deitado no tapete, os belos e arrepiantes clarões intermitentes. Quase não se enxerga nada; apenas silhuetas vegetais oscilam por detrás da espessa e líquida cortina.

Abro a cerveja e o primeiro copo é de um só gole; mais um outro e depois um terceiro. Pego outra garrafa e, na volta, aciono o botão do aparelho e, então, toca um CD escolhido ao acaso. Ajusto graves e agudos. A música inicia a travessia, compete agora com a chuva e percorre tortuosas galerias. Assim, o coração vai ficando menor, mais apertado, continuando a reduzir de volume no triste compasso dos acordes. Tento visualizar teus olhos - as duas negras jaboticabas - projetando-as na parede branca. Ela recebe os clarões externos, brilha e contrasta com o tenebroso escuro do ambiente. Teus olhos somem. Tento imaginar-te, então, pequena índia. Questiono os pensamentos, em busca de respostas: onde andarás, neste momento? Minas ou São Paulo? Queria, nesse instante, dominar a magia dos feiticeiros para, num rápido movimento de mãos, trazê-la aqui pra perto. Ficariamos, então, bem quietos, juntinhos, observando a chuva a lacrimejar as brilhantes faíscas incandescentes. Te abraçaria, beijaria tuas mãos, acariciaria levemente teu rosto e ficaria te contemplando, estático, só pelo prazer de te ver e de sentir teu cheiro. O sorriso de menina, os cabelos castanhos. As mãos vagariam sem destino e sentiriam o tremor do frágil corpo. Sonho, apenas sonho.

Então, por estranha alquimia cósmica, uma tênue bruma penetra pela fresta, por entre a porta e o piso. Aquela névoa fina vai ocupando todo o espaço, espalhando-se agora bem rapidamente. Permaneço petrificado por alguns minutos. A temperatura parece ter caido quase a zero. Minutos que parecem séculos. A música continua. Ouço-a e vou me acalmando. A bruma permanece. Me acalmo mais ainda e, de repente, os olhos tremem. A densa névoa começa a se materializar. As partículas se juntam e os gases se condensam. Não é possível! Ela toma a forma humana. Cabelos lisos, olhos escuros e o sorriso de pequena índia. Penso estar sonhando. Não! É verdadeiro, é real! As negras jaboticabas iluminam os contornos do teu rosto. O braço se mexe em lento movimento. A mão acena e tu me chamas para perto. Caminho; toco tua mão com a minha ainda trêmula. Deslizo-a pelo teu braço, te abraço e, então, sinto todo teu corpo. Nada virtual. Beijo-te loucamente, percorro-te toda para sentir-te verdadeira. Estaciono e, em cada local, analiso os pequenos detalhes. A pele é macia. Ficamos assim, estáticos, obsevando a chuva, os clarões. Teu o cheiro faz passar as horas, vagarosamente.

Terminam as músicas, cessa a chuva e, de repente, teu corpo se desfaz na bruma que então parte veloz. O sol já lança os primeiros dardos luminosos. O coração bate acelerado e os olhos marejam. Procuro-te por toda parte, até lá fora, olhando pelos vidros. Abro a porta e te busco nas poças d'água. As lágrimas escorrem pelo rosto, procuram companhia nas pequenas gotas de chuva para não ficarem, também, solitárias. Foi um sonho? Ainda sinto teu aroma impregnado em minhas mãos.

Entro, retornando ao abrigo. Olho novamente pelo vidro. A enxurrada lava a rua e a vejo transportando a fina névoa. Dormirei, agora, extenuado e solitário. Questiono os pensamentos: Minas ou São Paulo? Amanhã, talvez, choverá novamente.

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