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Publicado: Terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Bons Companheiros

Resolvi fazer uma doação dos livros acumulados por longos anos de leituras da família.
 
Não é de forma alguma uma biblioteca significativa, não tem edições raras nem títulos excepcionais, foi crescendo aos poucos, especialmente quando o pai tinha muito contato com editoras da capital, por força de ofício. Reflete as preferências literárias, tem biografias, romances, alguma filosofia e assuntos variados, que podem reconstruir nosso percurso intelectual.
 
Ainda há muitos livros de química, bem conservados, em encadernações de couro, coisa de mais de cinqüenta anos, usados pelo pai na faculdade. Também muita coisa em inglês, herança da avó estrangeira e os livros infantis, companheiros na rede ou à sombra das árvores do jardim de minha meninice.
 
Bem, passei duas noites com a cara enfiada nas estantes e pouco evolui nessa “limpeza”. O que era para ser simples e objetivo, acabou se transformando em uma luta entre a mágica que os livros sempre tiveram para mim e a necessidade de renovar, criar espaços para abrigar melhor as novas aquisições. 
 
Mas, como descartar velhos amigos, parceiros de tantas aventuras, que alimentaram a imaginação da criança curiosa e ávida por novidades? Como resolver o que pode ser doado e o que ainda tem muito valor, mesmo que nunca mais seja lido?
 
As reinações de Narizinho, todas elas, foram literalmente devoradas em longas tardes modorrentas, de céu azul com nuvens de carneirinhos, um livro depois do outro, até completar a saga.
 
Cada nova história trazia uma leva de personagens que durante bom tempo conviviam comigo, eram tão reais quanto as pessoas da casa.
 
Tinha especial predileção pelas aventuras de capa-espada e pela mitologia grega, conhecia quase todos os habitantes do Olimpo e suas tramas que embaralhavam o destino dos homens.
 
Depois, lá pelos doze anos, já me era permitido alguns romances. Lembro que chorei semanas a fio com “meu Pé de Laranja Lima”, não podia ver rabanada nem apito de trem que meu coração doía de lembrar o infortúnio do menino que conversava com a árvore do quintal.
 
Depois vieram os romances de época, corte do Rei Sol, Madame Pompadour, Maria Antonieta, o conde de Monte Cristo, os Miseráveis, Oliver Twist e tantos outros que excitavam a imaginação e me faziam participar com sofreguidão dos enredos rocambolescos, quando a aflição era muita, ia direto para as últimas páginas, só para desvendar logo o fim da história e poder ler tudo com mais calma, às vezes com uma pitada de inconformismo pelo destino dos personagens, que não coincidia com as soluções que achava melhor.
 
Nessa época já era comum passar as noites lendo, apesar das recomendações da mãe – vai estragar sua vista, amanhã cedo tem aula - não tinha jeito, era impossível largar a história antes de chegar no fim. Cheguei até a ler com lanterna em baixo das cobertas.
 
Foram anos de íntima convivência, em dialogo com meus personagens prediletos, algumas vezes até reescrevia mentalmente finais diferentes para suas histórias e, de livro em livro, tornei-me uma viciada em leitura, hábito que nunca abandonei.
Considerando o aspecto lúdico, do divertimento que uma boa história representa e do quanto isso é importante para estimular e aguçar a imaginação criativa, uma espécie de válvula de escape para as tensões, um livro significa bem mais que uma escapulida da (dura) realidade.
 
É uma prática que devia ser incorporada aos nossos hábitos diários, como escovar os dentes e tomar água, o exercício constante vai se aprimorando com o tempo, se tornando mais exigente e acaba por ser uma ferramenta essencial para o crescimento intelectual e emocional.
 
Sem querer parecer tonta a essas alturas do cyber-mundo, em que a linguagem visual impera soberba e empobrecedora, vejo com um aperto no coração as crianças de hoje preferirem os joguinhos de computador ao invés dos livros. Em casa mesmo comprovo isso, os sobrinhos acham as histórias do Sitio do Pica-pau Amarelo mais interessantes na tv que nas páginas originais de Monteiro Lobato, para ficar só no exemplo mais elementar.
 
É uma pena que elas não dêem uma oportunidade para a imaginação participar da mágica de criar uma história, montando os cenários descritos, inventando os detalhes do rosto dos personagens....   
 
Estante de livros são cada vez mais raras nas casas, os livros praticamente cederam seu lugar para os botões do computador ou do vídeo game.
 
Triste fim de Policarpo Quaresma, que continua na minha estante, junto com a maioria que, confesso, ainda não sou capaz de dar.
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