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Publicado: Domingo, 30 de maio de 2010

Átomos desembestados

Átomos desembestados

Podem tachar-me de saudosista, mas existem coisas que o chamado mundo moderno só fez involuir ao invés de aprimorar. E escrevo isso com as mãos trêmulas, os olhos saltando das órbitas e a justificada ira dos que se sentem logrados e cansados de levar gato por lebre. Não é a primeira vez que isso acontece no semestre, nem provavelmente será a última até que chegue a primavera por esses meridianos. Mas desta feita as consequências beiraram o intolerável.

Explico. Ainda anteontem, no meu costumeiro caminho de volta do trabalho para casa, apeei meu pangaré na venda do Agenorzinho Ulceroso a fim de repor uns gêneros de primeira necessidade em minha modesta e desfalcada despensa. Coisa trivial: três quartos de um queijo meia-cura, um palmo e dois dedos de fumo de rolo, grampos de cabelo para a patroa e um punhadinho de átomos para distrair a gurizada.

Já em casa, e desembrulhados os pacotes na mesa da copa, vi que estava tudo nos conformes com os grampos, o queijo e o fumo. Mas havia algo de muito estranho com os átomos. Pasmem: os elétrons de um dos ditos cujos giravam ao redor do núcleo em sentido anti-horário, ou seja, em absoluta não-conformidade com os dados técnicos informados no manual do fabricante. Ora, na escola rural aprendi que um elétron que gira ao contrário é energeticamente desequilibrado e pode provocar uma balbúrdia sem precedentes num lar pacato e cristão como o meu, com crucifixo na parede da sala e uma pá de santos espalhados pelos cômodos. Pois foi o que aconteceu. Até meu cachorro pôs-se a piruetar feito doido em volta do bidê ao estranhar (com toda razão que um ser irracional pode ser capaz de demonstrar) aquela aberração zombando da ordem do universo. Não foi nada fácil assimilar o engodo. Mal comparando, é a mesma coisa que comprar um teco de Molibdênio com peso atômico 94,95 e te enfiarem no embornal uma lasca de Zircônio cheirando a Césio estragado. Não obstante os nêutrons e prótons do referido átomo apresentarem boa aparência, elétrons enguiçados são pragas mais daninhas que pulgões no algodoeiro. Ô trem ruim.

O fato é que, minutos após aberto o saquinho pardo do empório, a roça toda entrou em colapso convulsivo. Os mal-formados átomos foram se multiplicando em outros ainda mais aleijados estruturalmente, e o desequilíbrio reinante dentro de casa logo tomou conta do terreirão, da tulha, do retiro das novilhas e das hortas suspensas de alface – não necessariamente nesta sequência. Os desastres se sucediam igual uma manta de crochê que se desmancha com a lã enroscada na pata de um marreco bêbado. A coisa foi indo até que o redemoinho de anomalias chegasse ao poço artesiano, quando a mutação atômica mergulhou na água e a transformou em H18O, uma geleca gosmenta que perfurava o fígado de quem tentasse matar a sede com ela.

Disse à meia voz aos meus botões: “Com mil batatas doces de quermesse, se não podemos confiar no bom funcionamento de um prosaico átomo à venda em qualquer birosca de arrabalde, que dirá quando precisarmos de uma molécula inteira?”

E olhe que não são raras as ocasiões em que precisamos de moléculas em bom estado e sempre à mão para qualquer eventualidade, como nas viagens ao litoral catarinense, ao alvejar roupa no tanque e mesmo nos estouros de boiada, onde são largamente empregadas para recolher pacificamente o gado ao seu confinamento.

Ah, meu pai, que saudade dos ioiôs de Neônio e os bilboquês de Silício. Tempo em que por aqui ainda se amarrava cachorro com linguiça.

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