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Publicado: Segunda-feira, 22 de maio de 2017

Antítese da Vida

Crédito: Domínio Público Antítese da Vida

ELA SEMPRE ESTEVE ALI - a antítese da vida. Desde o primeiro vagido – o urro provocado pela primeira dor, a do nascimento, garantia de outras mais.

Não sei dizer quando a notei escondida num canto, como um rebento semelhante a um bulbo, pronto para eclodir.

Certamente viveu submersa no grande lago infantil de difícil travessia, na turbulência das tempestades púberes ou como prisioneira, quando travestida em cavaleiro de armadura e lança em punho, eu desafiava o mundo em batalhas alucinantes contra moinhos de vento.

É possível que tenha se alimentado de nesgas de sonhos, fiapos de ilusões, alegrias fugidias, das parcas generosidades recebidas ou das fugazes conquistas – tornadas fracassos nos embates seguintes.

Teimosamente se escondeu nas dobras do perpétuo movimento de transmutação da vida e navegou à espreita, por anos a fio, aguardando o tempo de se fazer presente.

Talvez tenha acalentado muitos desencantos e desamores, na esperança de um acolhimento rápido.

De certo, no entanto, é que um dia dei por ela abrigada nas sombras. Foi o sinal. Como planta rasteira se alastrou pelo chão aos centímetros. Ganhou os cômodos e subiu pelas paredes, trazendo consigo um forte cheiro de mofo.

Manifestou-se na poeira dos móveis, nas cortinas sem cores, nas janelas embaçadas, nas brancas toalhas transmutadas em creme e nas louças descascadas.

Fez-se presente nas lembranças distantes dos risos infantis e dos balões coloridos, dos ancestrais e amigos ausentes, das fragrâncias, sensações e sabores perdidos. Tornou-se visível na opacidade do meu olhar, na falta de sonhos e no marasmo dos dias.

Não me lembro quando a vi pela última vez. Da cadeira cativa que ocupava, eu contemplava os intermináveis nasceres e pores de sol. Tantos que perderam a identidade. E nessa confusão de papéis, uma tinta rubra encobriu o horizonte, apagando para sempre da memória qualquer importância sobre o fato.

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