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Publicado: Segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Anjo Chamuscado

Moramos sempre no caminho de procissões. A casa da Santa Cruz já entrava o ano esperando São Benedito e a avalanche de devotos que o acompanhavam.

Eram domingos diferentes os das procissões, com mais atividades e mais gente na casa. As tias e conhecidas vinham para o almoço e depois ficavam conversando na varanda esperando a hora de ir para as janelas da frente.

Havia todo um ritual para assistir a procissão. As quatro grandes janelas da fachada da casa tinham lugares cativos e ninguém se atrevia a usurpar vaga alheia.

Toalhas de renda ou crochê, sempre brancas, feitas pelas mãos caprichosas das avós enfeitavam os parapeitos, as luzes colocadas no topo de cada janela eram acessas, mesmo que ainda estivesse claro.

Os sinos e os rojões eram a senha que o cortejo estava chegando e todos tomavam suas posições, muito bem arrumados para aquela tarde importante, os expectadores com menos “tempo de janela” se aboletavam na calçada, em frente à porta, sempre aberta.

As crianças tinham o privilégio de poder sentar nas janelas, seguras pelos braços dos mais velhos que cuidavam para que se comportassem devidamente. 

Acompanhando as rezas, com rosários desfiando lentamente entre os dedos, o único cumprimento aos passantes era um leve aceno de cabeça e o esboço de um sorriso discreto.

Eu me encantava com os anjinhos em vestes de cetim rosa e azul claro carregando as velas de alguma promessa feita em nome deles. Achava lindo, morria de vontade de um dia também ser anjo de procissão. Quando as procissões
eram por outros caminhos que não os da nossa rua, acompanhava Vó Zelinda e alguma tia. Dava um jeito de estar perto dos anjinhos. Admirava as asas alvas presas às costas e ficava imaginando se pesavam muito e voariam de batesse um vento mais forte.
        
De tanto insistir, falar e pedir, um dia consegui ser anjo. Arrumaram para mim um camisolão cor de rosa, asas branquinhas e uma pequena coroa de flores para a cabeça. Era procissão de Santa Rita, eu com uns seis ou sete anos, estava quase voando, sem precisar das asas, de tanta satisfação.
        
E lá fui, uma anjinha séria e feliz, pelas mãos de tia Minda, desfilando bem devagar em frente de casa para dar tempo de todo mundo me ver.
        
Quando a procissão voltou para a igreja, aquele mar de gente se amontoando na rua, esperando as palavras finais do padre e a benção, eu no meio daquela anjarada toda, já estava pensando nos pastéis da quermesse, quando deu-se a desgraça que encerrou minha breve carreira angelical.
        
Os fogos de artifício começaram a espocar naquele exagero típico de festa do interior e, para minha desventura, uma fagulha caiu bem na minha cabeça. Demorei uns segundos para entender de onde vinha o cheiro de queimado e quando dei pela coisa, tia Minda tentava, com seu lenço, remediar a situação e evitar chegar em casa com uma anja parecendo um frade franciscano, com o meio da cabeça pelada.             
        
Foi uma experiência marcante, que provou que eu, definitivamente, não nasci para ser anjo.
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