Agulhas que doem em mim
Quando eu era criança, acreditava que o mundo era mágico. Talvez isso fosse possível na época, justamente porque a magia estava em todas as partes. Lembro que eu era capaz de passar uma tarde inteira fingindo que minha Caloi Ceci era um ágil cavalo selvagem – e não à toa invariavelmente eu caía e me ralava dos pés à cabeça. Por ser hiperativa na infância, cada minuto era vivido ao extremo, e cada segundo era recheado de encanto.
Minha mãe dizia que eu não chegaria aos 15 anos com os pés inteiros. E de fato eu vivia arrancando a “tampa” do dedão. Por não saber andar, meus pés não acompanhavam os passos e eu vivia caindo. As pessoas me perguntavam “você só sabe correr, Alice?”, e eu nunca ficava perto a tempo de responder: lá estava eu, correndo novamente...
Ir a restaurantes era sempre sinônimo de desastre. Meu copo sempre virava e o refrigerante molhava tudo: pratos, talheres e até a comida. Isso sem falar na minha roupa. E todos me olhavam com aquela cara de “até que desta vez isso demorou a acontecer”.
A hiperatividade dominava minha bexiga também. Eu sempre fazia tour pelos banheiros da vida – e muitas foram às vezes que em viagens tínhamos que parar no acostamento da estrada, porque eu não aguentava esperar chegar até o posto de gasolina mais próximo.
Na época da escola eu era uma boa menina e acompanhava minha irmã até a biblioteca. Ela passava horas escolhendo livros naquela abafada salinha, enquanto eu a aguardava do lado de fora, em cima do pé de mexerica que tinha próximo ao muro. Os inspetores de alunos (da saudosa Pinheiro Júnior) não entendiam como eu poderia ser tão diferente da minha irmã mais velha; ela levava, bimestralmente, cartinhas elogiando suas notas. Eu levava advertências por mau comportamento e uma vez fui arrancada de cima do mastro da bandeira.
Mas isso tudo acontecia porque a vida, para mim, era mágica. Nunca fui do tipo de querer chamar a atenção dos meus pais por meio de traquinagens. A verdade é que a realidade se misturava à ficção da minha cabeça e eu vivia num mundo à parte. Literalmente.
Uma das coisas mais fantásticas que me recordo era quando meu pai anunciava que iria estourar pipocas. Eu me postava próxima ao fogão e olhava pelos três buraquinhos da pipoqueira os milhos virarem flocos brancos e gordos. Aquilo era realmente incrível, e na minha ingenuidade eu me certificava que era um ser feliz. O mesmo acontecia quando era feito o anúncio de que meus avós estavam chegando para passar uma temporada em casa. Amava quando isso acontecia e posso garantir que conseguia ficar longos segundos sentada, quietinha, apertando com o dedo as veias saltadas na mão da minha avó. Isso era quase um milagre! Eu, sentada, quietinha...
Na medida em que fui crescendo, fui aprendendo a andar – e passei a correr somente em casos extremos quando, por exemplo, saía tarde da faculdade e o ônibus já se aproximava do ponto. Também aprendi a controlar a ansiedade e graças a isso consegui, por meio de muito esforço, me apaixonar pela leitura. E posso contar nos dedos quantas vezes, em um ano, derrubo meu copo em cima da mesa.
Meus olhos, infelizmente, foram se nublando na medida em que os anos foram chegando. Com excesso de ceticismo no mundo e nas pessoas, fui deixando de ver a magia das coisas sem nem mesmo me dar conta disso. E só redescobri como é bom ser criança depois que me tornei mãe.
Hoje, já crescida, imagino como seria o mundo se todos fôssemos crianças. Já pensou a vida da sociedade com a ingenuidade das crianças e com a ausência das maldades?
Claro que, nesse caso especificamente, me refiro às crianças realmente puras. Penso na beleza da vida, se todos tivessem dó de matar formigas e atirar pedras com estilingue em pombas... Porque é assim que eu fui, e é assim que a Gabi, meu bebê crescido, é. Como eu tinha respeito pelos animais e pelas plantinhas, só sei avaliar esse tipo de criança.
Mesmo que tivéssemos as obrigações típicas dos adultos, se todos fôssemos crianças viveríamos mais em paz. Afinal, quantas vezes nos esquecemos de avaliar a beleza de um pôr-do-sol e apurar os ouvidos para o canto de um pássaro...?
Mas... infelizmente... a terra gira e a cada minuto nos tornamos mais e mais frios. E é na frieza que somos obrigados a acompanhar atrocidades que nos barbarizam, e nos chocam mais ainda quando se trata de algo cometido contra a pureza de uma criança. Aconteceu com o João Hélio, aconteceu com a Isabella e agora acontece com esse bebê que teve agulhas enfiadas pelo corpo.
Sinto que uma faca afiada corta minha alma, e me penalizo com esse bebê. Como será possível que essa criança acredite no mundo e em seus ideais, quando tão nova se viu vandalizada dessa forma? Terá ela condições de continuar vendo magia em sua infância, tendo sido violada desse jeito?
Sempre quis poder colocar minha filha em uma bolha, para protegê-la de todo e qualquer mal... e minha vontade se expande para as crianças que realmente necessitam desse tipo de guarnição. Mas sei que isso é impossível, do mesmo jeito que o mundo nunca será feito apenas de crianças. Portanto, só me resta apelar para as forças divinas, e pedir arrego quando o mundo dá a impressão de estar de cabeça para baixo.
Deixo para os outros o pedido de perdão para o monstro que fez isso.