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Publicado: Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A sorte grande

Beto e Lia nasceram e cresceram em um bairro pobre da periferia de uma grande cidade. Filhos de famílias humildes, desde muito cedo, trabalharam e estudaram com bastante sacrifício, mas, sonhavam com uma situação melhor, conquistada com seu esforço conjugado.

Pensavam em casar-se, um dia, ter muitos filhos e ser muito felizes.

Tudo começou quando uma pessoa conhecida ganhou um pequeno prêmio na Sena.

Todos sabemos que a probabilidade de acertar os números é muito remota, mas quando alguém conhecido acerta, sempre nos parece que não é tão difícil assim, que é bem possível. . .

E foi assim que Beto e Lia tiveram a ideia. Cada semana era um deles que fazia o jogo, mas, quando o prêmio saísse dividiriam exatamente pelos dois.

Por algum tempo mantiveram o combinado. Divertiam-se em sonhar com o que cada um faria com a sua parte. Uma casa na praia. . . um carro. . .uma viagem. . . uma jóia. . .

Depois conferiam e vibravam quando algum número coincidia achando que estava esquentando e faziam a estatística de quem acertava mais vezes. . .

Com o tempo, porém, foram relaxando. Não jogavam mais regularmente, mas, sempre que um deles lembrava, fazia o jogo e conferiam juntos, sem muito entusiasmo nem esperança.

Continuavam o namoro e o casamento estava cada vez mais próximo.

Já formados e bem colocados, construíram uma casinha pequena em um bairro novo e promissor e, sempre juntos, a estavam montando, escolhendo cada detalhe, comemorando cada etapa vencida.

Mas...

Um belo dia aconteceu o milagre. O Beto fez um joguinho e a sorte resolveu bafejá-lo. Um prêmio acumulado, muito grande, e ele foi o único acertador.

Maravilha! Coisa de não se acreditar! Será que não estavam sonhando?

Lia, entretanto teve a sua primeira decepção quando o Beto dias depois, recebendo o dinheiro se negou a dar-lhe a metade conforme haviam combinado.

- Você não precisa de dinheiro. Eu agora sou um homem rico. Você vai casar-se comigo e tudo será seu também.

- Mas eu quero a minha parte, para eu gastar com quiser. Não foi isso que combinamos?

- Bobagem! Isso foi há muito tempo. Nós nem temos jogado toda a semana como antes. Quanto tempo faz que você não joga?

- A última vez fui eu quem jogou e se tivesse ganhado nem pensaria em deixar de dar-lhe a sua parte.

- Mas não ganhou. Não sei por que estamos discutindo. O que você quer? Pode falar que eu agora posso dar-lhe o que você quiser.

- Não quero nada, pode ficar com tudo para você. Respondeu amuada.

Lia estava triste. Começava a sentir que a Sorte Grande não ia lhe trazer muita felicidade. No primeiro momento já estavam brigando, eles que sempre se entenderam tão bem...

Beto ficou eufórico com a nova situação. A dinheirama subiu-lhe à cabeça despertando-lhe todos os ocultos e, até então, impossíveis sonhos de consumo.

Começou a frequentar lugares caros e badalados, associou-se aos melhores clubes da cidade e, em pouco tempo, fez amizade com políticos e ricaços. Seu nome e sua fotografia começaram a aparecer nas colunas sociais e sua vida mudou de repente.

Lia não conseguia seguir-lhe o rápido acesso. Não se sentia à vontade no meio da granfinagem e o Beto começou a criticá-la constantemente dizendo que ela tinha espírito de pobre.

Quando falou em comprar alguma coisa para a sua casinha ele riu dela:

- Será que está pensando em continuar com aquele cochicholo? Eu vou comprar uma mansão para nós, em um bairro nobre. Um lugar elegante onde poderemos receber os amigos, dar grandes festas. . .

- Que pena! Eu gosto tanto da nossa casinha, tudo o que tem lá escolhemos juntos e tem um valor estimativo muito grande para mim. Você viu como as roseiras que plantei no quintal já estão começando a florir?

- Bobagem! Quando estivermos casados e morando na nossa mansão você vai esquecer tudo isso.

- A Candinha casa-se no sábado. Nós precisamos ir ao seu casamento.

- Nem pensar! Nós precisamos nos desligar dessa gente. Mande um presente para ela que já está muito bom.

- Você está se esquecendo dos nossos melhores amigos.

- Minha vida mudou. E a sua também devia mudar. O que adianta ficar rico e continuar vivendo do mesmo jeito?

E, assim, as decepções sucediam-se. Cada dia que passava parecia que uma distância maior estabelecia-se entre eles e a Lia começou a sentir saudades do namoradinho pobre que, muitas vezes, tinha que escolher se ia ao cinema ou tomava um sorvete, mas gostava dela de verdade.

Tudo culminou, no entanto, no dia em que ele lhe disse que tinha comprado um apartamento lindo, no centro da cidade, e queria que ela se mudasse para lá, até o casamento, pois não ficava bem para ele se os seus amigos ricos soubessem que sua noiva era filha de um pedreiro e morava na periferia.

Foi a gota d água!

Lia, furiosa, tirou do dedo, o anel de brilhante que ele lhe dera, jogou sobre a mesa e saiu dizendo:

- Para mim, chega! Fique com sua riqueza e seus amigos que eu volto para junto daqueles que sempre foram meus amigos e continuam sendo.

Ela esperava que ele a seguisse, mas ele, calmamente, colocou o anel no bolso, levantou-se e foi para outra direção.

Passaram-se os dias e ele não a procurou. Ela pensou até em procurá-lo, mas não o fez.

Pouco tempo depois, muito pouco mesmo, ele casava-se com uma moça rica, davam uma grande festa e apareciam ocupando uma folha toda do jornal local como um grande acontecimento social.

E a Lia continuou a sua vidinha de sempre, mas, quando alguém lhe lembrava da Sorte Grande ela dizia amargurada:

- Eu ganhei o Azar Grande, isso sim!

Mas, pensando bem, de certa forma ela ganhou a Sorte Grande, sim, pois teve a oportunidade de conhecer o verdadeiro caráter do homem com quem pretendia se casar. O egoísmo, a futilidade, o desamor, eram defeitos que ele já possuía e que o impacto da Sorte Grande fez vir à tona.

Um dia a Lia ia descobrir isso, quando, talvez, fosse tarde demais.

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